terça-feira, 26 de julho de 2011

A IDENTIDADE DOS EXCLUÍDOS. RESENHA SOBRE O DOCUMENTÁRIO: FALCÃO – MENINOS DO TRÁFICO.

Athayde, Celso e Mv Bill; Falcão – Meninos do Tráfico.


Um monstro não merece piedade nem compaixão. Quando este monstro conhece o seu fim por qualquer meio que seja, normalmente o que se tem é o suspiro de alivio das “pessoas boas”, que se vêem hostilizadas e cerceadas na sua liberdade por esse ser monstro medonho, desalmado e sem traço de humanidade. Mas o que fazer se descobrimos que esse monstro tem um coração, que nesse coração mora uma criança, e que essa criança só quer uma coisa: o seu carinho, um pouquinho do seu afeto, ocupar um cantinho que seja no seu olhar periférico e receber seu calor para vencer o frio do desprezo, e da exclusão?

Esta foi à situação que o rapper MV Bill trouxe à tona pela exibição do documentário: Falcão – Meninos do Tráfico. Este documentário foi produzido juntamente com o empresário de MV Bill, Celso Atahyde, e pelo centro de audiovisual da CUFA, Central Única das Favelas, que retrata a vida de jovens de favelas brasileiras que trabalham no tráfico de drogas.

O nome “Falcão” é um termo usado nas favelas, que designa aquele cuja tarefa é vigiar a comunidade e informar quando a policia ou algum grupo inimigo se aproxima. O “Falcão” geralmente atua no tráfico noturno. Ele não dorme esta sempre alerta, e para manter essa vigilância, na maioria das vezes, recorre ao uso de drogas, que o manterá acordado.

O documentário nos ajuda a ver a formação de uma identidade excluída, tanto no particular, como na relação do individuo com o mundo a sua volta. Para esses meninos o mundo se torna um monstro enorme que não os aceita em seu meio e que os deixou em um lugar de reclusão: a favela. Como sobreviver a esse monstro poderoso e cruel? É preciso se tornar um monstro maior, mais poderoso e mais cruel. Então esses meninos que querem carinho, que precisam de atenção e estão perdidos sem um rumo a seguir, se revestem de uma roupa encouraçada, que é capaz de esconder o sentimento de frustração, dos olhos que nunca desejarão ver a quem esta por trás do monstro do tráfico.

A identidade desses excluídos começa a se formar desde a infância, nas brincadeiras que reproduzem o mundo do tráfico . Surge também a presença do “Fiel”, termo atribuído aos bandidos que tomam a frente do tráfico, e que solicitam a assistência destes jovens, na compra de produtos, no “asfalto”, o mundo fora das favelas, onde esses bandidos não têm acesso, e que esses jovens menores podem freqüentar livremente. Eles recebem por esses assistencialismos, tanto dinheiro, quanto a atenção dos mesmos, o que contribui para formar a idéia de que estes bandidos, na verdade sejam protetores em meio a um mundo “onde a bala come, e a lei é a do cão. O “Fiel” se torna mais importante do que os outros amigos, mais importante do que os pais, formando assim uma nova estrutura de autoridade para estas crianças.

Ao reconhecerem na figura destes bandidos, alguém a quem admirar cujo estilo de vida é sempre empolgante, os meninos passam também a desejarem portar uma arma, pois está lhe dará poder, proteção, respeito e sedução. Querer uma arma para si, ou mesmo uma “motinha” é querer se igualar ou ao menos chegar perto do fascínio que os bandidos causam na comunidade em que vivem. O processo da formação da identidade se dá, portanto na relação das diferenças e semelhanças, no suprimento de uma “dignidade”, mesmo que falsa, que os bandidos fornecem a essas crianças que são carentes em sentido material e emocional.

Muitas vezes o caminho do crime se dá pelo fato familiar: uma mãe desamparada; e os meninos encontram no mundo do crime um modo de trazer a ela uma “vida melhor”. Normalmente a figura do pai é ausente destas famílias. Segundo alguns relatos do documentário, muitos destes meninos tem mesmo uma revolta com a figura paterna. Quando eles formam suas famílias irão reproduzirem o que viveu, tornando-se pais ausentes, que produzirão filhos revoltados que também serão pais faltosos, num ciclo infindável de repetição de identidade de exclusão.

Esses meninos passam a não acreditarem que vivem em sociedade, pois esta sociedade, lá de fora, os considera como nada, ela os excluiu das suas afeições, e literalmente do seu mundo. Na favela eles podem participar de uma comunidade , mesmo que essa não tenha os elementos da sociedade de fora que os rejeitou. Ali na favela e participando da vida do crime, eles têm a oportunidade de vir a ser, o que não pode ser lá fora, no “mundo do asfalto”. Desta forma se completa a identidade dos meninos do tráfico, identidade essa que aos olhos da sociedade do “asfalto”, os torna alvos de uma rejeição maior.

A palavra que podemos citar como sendo o elo de união entre todos na favela é: sobrevivência. Os que preparam as drogas, os que a vendem, os que vigiam o morro, os que soltam os fogos, todos estão unidos pela necessidade de sobreviver em meio a um mundo capitalista sem piedade e monstruoso.

Neste ponto, podemos nos lembrar da idéia de “amor fati”, discutida por Nietzsche. Ele acreditava que o “amor aos fatos” é uma formula do amor a vida como ela é. Esse “amor fati” envolve viver. Viver sem transformar os adjetivos, os estigmas, criados por uma minoria governante e excludente, em deuses ou coisas parecidas. Para Nietzsche a vida não pode ser transformada em apenas uma questão de sobrevivência, pois agir assim seria caminhar de quatro junto a alguma ética, buscando um cardápio moral que deveria despencar de alguma mesa dos governantes com suas idéias de exclusão e de superioridade.

Entendo que esses meninos do tráfico, perderam suas batalhas pela vida, quando se deixaram moldar pelos adjetivos das minorias dominantes. Quando eles deixam de viver para poderem sobreviver, então fazem de sua existência um fardo pesado, que os obriga a entrarem nesta roupa encouraçada, a prova de sentimentos e imune ao sofrimento, mas que aos olhos dos outros, os faz verdadeiros monstros, sem alma. E muitos destes passam a não ligar para mais nada, a não se importar com nada, nem com sua vida e muito menos com a do seu próximo.

A pergunta que persiste, porém é: o que faremos, agora que descobrimos que o monstro tem coração, tem sentimentos, é apenas uma criança, e uma criança que quer nosso afeto, nosso carinho e nossa atenção? Não dá para transformá-los novamente em monstros, pois as roupas encouraçadas foram destruídas. Perdemos a inocência através deste documentário. Insistir em manter esses meninos neste espaço de exclusão seria revelar que afinal nós também temos uma roupa encouraçada, que nos torna MONSTROS desalmados e cruéis.


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