segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

NIETZSCHE E A DECADÊNCIA DA CULTURA OCIDENTAL EM SÓCRATES


Para Nietzsche, Sócrates (e Platão) é um momento decisivo no percurso cultural do Ocidente. Com ele acaba a grande época da tragédia grega — glorificação da vida mesmo nas suas dimensões dolorosas e sombrias — e começa uma época em que a tendência é a de procurar fugir às contradições, aos sofrimentos, a tudo o que a vida tem de sensível e de físico. Sócrates, no entender de Nietzsche, inventou a metafísica, transformou a filosofia na procura do inteligível e do eterno (supra-sensível) pregando a renúncia ao mundo sensível, ao mundo do devir e ao corpo, considerado como “o carcereiro da alma”.
Inaugura-se com Sócrates uma atitude que caracterizará, em geral, a cultura ocidental: a “calúnia do sensível”, a desconfiança em relação ao corpo e aos sentidos, o desprezo e a condenação de tudo o que é natural. Com Sócrates faz-se da vida aquilo que deve ser julgado em nome da razão, em nome de valores considerados “superiores”, tais como a Verdade e o Bem, identificados com o divino, o supra-sensível. A decadência, a atitude antivital ou antinatural surge claramente com Sócrates, que estabelecerá a distinção entre dois mundos, identificando o inteligível com o mundo real e verdadeiro e o sensível com o mundo ilusório e falso.
Sócrates sobrevalorizou o aspecto lógico-racional, fez da razão o centro de toda a interpretação da realidade e da verdade o valor supremo. Nele está a raiz dessa “venerável” tradição que se resume na fórmula: “Filosofar é procurar a verdade com toda a nossa alma”. Tudo submetendo ao juízo da razão, Sócrates vai, segundo Nietzsche, interpretar a arte trágica como algo irracional porque apresenta efeitos sem causas e causas sem efeitos. Por isso deve ser ignorada. As tragédias — os escritos e as peças de Esquilo e Sófocles — afastavam o homem do caminho da verdade, não obedeciam à razão, que tudo quer claro e distinto. Sócrates colocará a tragédia clássica na categoria das “artes aduladoras”, como conjunto de emoções agradáveis mas inúteis, “indignas de filósofos”. Sócrates é o radical oposto da concepção dionisíaca da vida, do homem trágico. Ele é o homem teórico.
Enquanto que em qualquer homem produtivo o instinto é uma força afirmativa e criadora e a consciência uma força crítica e negativa, em Sócrates o instinto torna-se crítico e a consciência criadora. Com a sobrevalorização do homem teórico abandonou-se o fenômeno do trágico, que exprimia a natureza profunda da realidade. Distinguir o verdadeiro do aparente — sublime ilusão metafísica — era, para Sócrates, a única atividade digna do homem. Querer a verdade, o conhecimento puramente racional, este era o lema de Sócrates. Nietzsche interrogar-se-á sobre o valor deste querer. Por que querer a verdade, a razão? O que é que em nós quer a verdade? Que vontade, que tipo de vitalidade, se manifesta neste querer a verdade?
Para Nietzsche, Sócrates, sob o nome de verdade, oculta e ao mesmo tempo manifesta o ódio ao sensível, ao corpo, às paixões, ao devir, em suma, a procura da verdade racional traduz-se numa desvalorização da vida. Com o racionalismo socrático-platónico começa a decadência. Em vez de confiar no corpo e nos instintos, Sócrates faz da razão a verdadeira realidade do homem, ó que consistirá em reprimir a natureza, os sentidos, os instintos, ou seja, em transformar a decadência num modelo de humanidade.
A razão vai condenar a vida, os sentidos, os instintos. O doente que não pode suportar a vida no que esta tem de sensível, de físico, vai vingar-se maldosamente, vai amaldiçoar o corpo e glorificar os argumentos da razão. Transformando a razão na “verdadeira força” do homem, o fraco, o homem de vitalidade débil e enfraquecida, vai afirmar-se pretensiosamente como superior rebaixando o seu adversário através da dialética, que é um discurso em que as teses do adversário são submetidas à tortura da negação racional. Nietzsche vê no diálogo socrático uma forma de o “homem da razão” ridicularizar o seu interlocutor.
O ataque de Nietzsche a Sócrates é, em alguns aspectos, grosseiro e injusto. O que nos interessa é, contudo, ver o sentido desse ataque. Para Nietzsche a filosofia não é um puro discurso, racional e objetivo: confiar na razão é também escolher certo tipo de combate que tem a ver com o tipo de homem que se é. Para Nietzsche, quando um homem decide escolher-se como ser racional e sobrevalorizar a razão é porque, muito provavelmente, tem necessidade de uma razão tirânica para reprimir e recalcar a desordem dos seus instintos, o seu desequilíbrio psicofisiológico.
Abandonar os instintos em favor de um mestre despótico, a razão, é, segundo Nietzsche, o sinal de uma vontade despótica, de um desejo de ser autoridade, de dominar-se a si mesmo e de dominar os outros: ser racional a todo o custo é, diz Nietzsche, expressão de uma vontade muitas vezes sádica de dominar por certos meios. Ora, estes meios são mais sintomas do que remédios, porque a razão pode ser um falso médico que torna o homem cada vez mais doente ao pretender salvá-lo. Vendo na dimensão sensível ou corpórea a fonte de todos os conflitos, desgraças e discórdias que, segundo ele, transformam a vida humana num inferno, Sócrates julga ver na razão, a dita fonte do consenso e da concórdia, o remédio para todos estes males. Mas acaba por transformar o homem num ser anêmico e mórbido, que deve auto-reprimir-se, calar completamente a voz dos instintos, chegando ao ponto de querer a morte do corpo para salvar a alma desta prisão. É preciso já estar muito doente para querer este remédio: a salvação é, no fundo, uma perdição, sintoma ou manifestação de uma vontade doentia.

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