quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Cartas Chilenas - Carta 13ª FINAL

Um mundo estranho e cheio de injustiças! Com este pensamento, Critilo chega ao final de seus relatos sobre as peripécias do famigerado Governador de Chile Fanfarrão Minésio. Esta décima terceira carta, que ficara incompleta, faz uma denúncia do uso da religião e da religiosidade do povo para meios corruptos.

[...]
Ainda, caro amigo, ainda existem
Os vestígios dos templos suntuosos
Que a mão religiosa do bom Numa
Ergueu a Marte e levantou a Jano.
Ainda, ainda lemos que elegera,
Para essas divindades sacerdotes,
E que muitas donzelas consagrara,
A fim de conservar-se aceso o fogo
Em o templo de Vesta, sobre as aras.
Também, também sabemos que esse sábio,
Para ter mais conceito entre o seu povo,
Fingiu que a ninfa Egéria, sendo noite,
Vinha falar com ele, e que benigna
A forma do governo lhe inspirava (p.185).

Critilo usa personagens da antiga Roma para ilustrar o que estava acontecendo em seus dias. Mais precisamente, o autor, faz uso da mitologia grega, usada pelos romanos, para denunciar os abusos de poder que eram justificados como orientações e conselhos divinos.

Desta forma, Critilo, cita Numa Pompílio (753 a.C.-673 a.C.) que foi um sabino escolhido como segundo rei de Roma. Sábio, pacifico e religioso, dedicou-se a elaboração das primeiras leis de Roma, assim como dos primeiros ofícios religiosos da cidade e do primeiro calendário.

Numa Pompílio acrescentou dois meses ao calendário que passou a ter 354 dias. Esses novos meses foram dedicados aos deuses. O primeiro mês criado foi janeiro em homenagem a Jano, deus de duas faces, uma voltada para a frente e outra para trás. Protetor das entradas e saídas, ele era considerado também deus dos princípios e começos – como a primeira hora do dia e o primeiro mês do ano. O segundo mês que foi instituído por Numa Pompílio foi março. Dedicado a Marte, deus da guerra.

A lenda afirma que o projeto e reforma política e religiosa de Roma aplicado po Numa Pompílio foi ditado a ele pela ninfa Egéria, com a qual, já viúvo, costumava passear no bosque e que se apaixonou por ele ao ponto de fazê-lo seu esposo.

O uso da religião e religiosidade, no caso de Numa Pompílio, possibilitou ao povo aceitar e apoiar as reformas que eram estabelecidas, pois eles acreditavam que estas eram de fonte divina.

O mesmo fez Sertório, que dizia
Que nada executava, que não fosse
Ensinado por uma branca cerva,
Que a deusa caçadora lhe mandara.
Mafoma, o vil Mafoma, astuto segue
Também esse sistema. Ao seu ouvido
Acostuma a chegar-se a mansa pomba.
A nação ignorante se convence
De que este seu profeta conhecia
Os segredos do Céu por esse meio.
Não há, meu Doroteu, não há um chefe,
Bem que perverso seja, que não finja
Pela religião, um justo zelo,
E quando não o faça por virtude,
Sempre ao menos o mostra por sistema. (p.185)
[...]

Outro personagem romano citado por Critilo foi Quinto Sertório. Ele era da cidade de Núrsia, terra dos sabinos. Viveu, segundo o que se sabe, entre os anos 100 a.C.-50 a.C. Sertório era um homem corajoso e estrategista, por isso logo alcançou importantes postos no exército romano, se tornando o comandante de um batalhão.

No ano 73 a.C., na Espanha, um campônio chamado Espano, que vivia nos campos, encontrou um dia, por acaso, uma cerva que havia há pouco dado cria e fora desencovada por caçadores. Apoderando-se da mãe, ele tratou também de assenhorear-se da cria, uma pequena cerva de pêlo totalmente branco. Uma raridade! Sabendo achar-se Sertório no lugar, e que ele recebia com satisfação os presentinhos que lhe faziam de frutas, macacos e caças, mostrando-se muito reconhecido aos seus doadores, e remunerando-os devidamente, o campônio foi oferecer-lhe a pequenina cerva, que muito o agradou.

Com o decorrer do tempo ele tornou-a tão mansa e domesticada que ela o atendia ao chamado, seguia-o por toda parte e não se assustava com a presença dos inúmeros soldados armados, nem com o barulho e tumulto do acampamento. Aos poucos Sertório transformou aquilo em milagre, fazendo crer aos bárbaros que aquilo fora uma dádiva que Diana lhe fizera, para prognosticar-lhe as coisas futuras, pois sabia serem os bárbaros crentes e supersticiosos por natureza e não relutarem em receber semelhante crença.

Quando ele recebia notícias secretas de que os inimigos iriam atacar alguns lugares dos países e províncias que lhe estavam subordinados, ou que, de surpresa ou por valor, lhe haviam tomado algum de tais lugares, ele declarava-lhes que, à noite, durante o sono, a cerva o prevenira, aconselhando-o a conservar sua gente a postos e em armas. Ao receber aviso de que algum dos seus tenentes havia ganho um combate ou levava vantagem sobre os inimigos, ele escondia o mensageiro, e levava sua cerva a público, coroada e coberta de ramalhetes de flores, declarando que alguma boa notícia devia estar a chegar-lhe. Exortava a todos a ter esperança e a se alegrar, e pedia-lhes que fizessem sacrifícios aos deuses, rendendo-lhes graças pela boa nova que não tardaria a receber.

Desta forma, Critilo, faz denuncia de como o vil governante utiliza a religião e a religiosidade do povo para justificar suas travessuras e atos de corrupção, fazendo-os crer que ele, Minésio, faz o que faz por orientação divina.

Apesar de todas as cartas serem escritas em tom de denúncia, não há nada nelas que corresponda a um sentimento de nacionalismo e rebeldia contra o domínio português ou contra o sistema de poder. Sua crítica dirige-se à violação da justiça constituída, ao abuso de poder, à corrupção palaciana e aos desmandos apoiados na militarização do governo ("Não há, não há distúrbio nesta terra / De que a mão militar não seja autora"). As críticas contidas nelas ultrapassam as circunstâncias de um determinado governo para desnudar as bases do autoritarismo colonial, com seu sistema de privilégios e sua mão militar.


FIM

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