sábado, 17 de novembro de 2018

Reinhart Koselleck - Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos - resenha


KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos; tradução do original alemão Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira; revisão da tradução César Benjamin. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.

Apresentação:

Historie, termo alemão para História, era usado, até a metade do século XVII, para descrever os eventos isolados que poderiam servir como guia ou modelo para situações atuais. Como exemplo, podemos citar a história de Florença, a história da Igreja, a história das Guerras e assim por diante. Até essa época, entendia-se que a experiência humana do passado estava fundamentada em um saber ético do presente.

O termo, historie, sofreu uma mudança, de acordo com as transformações da sociedade humana, durante o Iluminismo, referentes às relações do homem com o tempo, em especial a relação passado-presente. Desta forma, em vez de historie, o termo que passou a ser empregado foi Geschichte, que basicamente designa uma sequência unificada de acontecimentos ou eventos que constituem a marcha da humanidade.

As mudanças semânticas dos conceitos e as transformações proporcionadas pela linguagem atualizada, são os elementos centrais dos estudos desenvolvidos por Reinhart Koselleck, reunidos no livro Futuro Passado. Koselleck, retoma assim, o projeto de Dilthey, que segue uma tradição hermenêutica orientada a reconstruir os significados que se sedimentam nas objetivações empíricas do sentido. Koselleck, segue também os passos de um de seus mestres, Hans-George Gadamer, que entendia a linguagem como sendo “a primeira interpretação global do mundo” que, por sua vez “é sempre um mundo interpretado na linguagem”.

Adepto da escola da “história dos conceitos”, Koselleck, juntamente como Otto Brunner e Werner Conze, seus mestres, organizaram, na década de 1960, o monumental dicionário histórico dos conceitos político-sociais fundamentais da língua alemã, cujo objetivo era conhecer “a dissolução do mundo antigo e o surgimento do moderno por meio de sua apreensão conceitual.

Em sua obra, Koselleck, argumenta que a modernidade é caraterizada por sua nova percepção do tempo. Assim, em termos gerais, os seus ensaios, abrangem a questão do tempo histórico, com sua apreensão e definição.

A história dos conceitos, segundo Koselleck, faz uma análise das transformações históricas de longa duração, especialmente no período entre 1750 e 1850, que marcam a “emergência da modernidade”. O autor abrange também a relação existente entre a história dos conceitos e a história social.

Do ponto de vista historiográfico, a especialização na história dos conceitos teve não pouca influência sobre as investigações conduzidas pela história social. [...] ao longo da investigação da história de um conceito, tornou-se possível investigar também o espaço da experiência e o horizonte de expectativa associados a um determinado período, ao mesmo tempo em que se investigava também a função política e social desse mesmo conceito. Em uma palavra, a precisão metodológica da história dos conceitos foi uma decorrência direta da possibilidade de se tratar conjuntamente espaço e tempo, com a perspectiva sincrônica de análise (KOSELLECK, 2006, p.104).

Portanto, Koselleck, afirma que a história dos conceitos não só contribui para a história social, como, esta disciplina, não poderia ser praticada sem aquela, pelo menos no que se refere ao recorte cronológico analisados em sua obra.

Nascido na Alemanha, em Gorlitz, no ano de 1923, Koselleck, passou pela dura experiência de combater na frente de guerra como soldado do exército de Hitler. Derrotado, foi feito prisioneiro em um campo de concentração russo. Na década de 1950, iniciou-se na carreira acadêmica. Alguns estudiosos, dizem que a obra de Koselleck, devem ser entendidas como uma tentativa de compreender os fundamentos da modernidade, sem, contudo, declinar da necessidade de enfrentar as experiências vividas na segunda guerra mundial.

O livro, de Koselleck, divide-se em três partes: 1) sobre a relação entre passado e futuro na história moderna; 2) sobre a teoria e o método da determinação do tempo histórico; 3) sobre a semântica histórica da experiência. Nos quatorze ensaios que compõem essa obra, o autor, mantem uma questão em comum: o tempo histórico. Porém, para se chegar a esse tema central, Koselleck, faz uma profunda investigação sobre vários aspectos da teoria da história.

O futuro passado dos tempos modernos:

Na primeira parte, o autor, situa o surgimento da modernidade, como estando atrelado ao desenvolvimento das ideias iluministas que, a seu ver, foi uma política austera, “capaz de eliminar lentamente, do campo da formação e da decisão da vontade política, as renitentes esperanças religiosas para o futuro, que então grassavam, depois da desagregação da igreja” (KOSELLECK, 2006, p.29). Segundo o autor, apesar das predições cristãs para fim completo do mundo, o curso das coisas humanas não foi prejudicado, ao contrário, “um tempo diferente e novo foi inaugurado” (KOSELLECK, 2006, p.31). Desta forma,

A partir de então se tornara possível referir-se ao passado como uma idade média. Os próprios conceitos – a tríade Antiguidade, Idade Média e Idade Moderna – já se encontravam disponíveis desde o Humanismo, mas foram gradativamente disseminados para a história [Historie] apenas a partir da segunda metade do século XVII. Desde então, o homem passou a viver na modernidade, estando ao mesmo tempo consciente de estar vivendo nela (KOSELLECK, 2006, p.31).

Koselleck entende que, “com o advento da filosofia da história” um “incipiente da modernidade desligou-se de seu próprio passado, inaugurando, por meio de um futuro inédito, a nossa modernidade” (KOSELLECK, 2006, p.35). Com essa descrição, O autor, nos fornece, as duas ideias centrais da nossa modernidade: um futuro inédito e um tempo passível de aceleração.

O tempo que assim se acelera a si mesmo rouba ao presente a possibilidade de se experimentar como presente, perdendo-se em um futuro no qual o presente, tornado impossível de se vivenciar, tem que ser recuperado por meio da filosofia da história. Em outras palavras, a aceleração do tempo, antes uma categoria escatológica, torna-se, no século XVIII, uma tarefa do planejamento temporal, antes ainda que a técnica assegurasse à aceleração um campo de experiência que lhe fosse totalmente adequado (KOSELLECK, 2006, p.37).

Desta forma, segundo Koselleck, a modernidade define uma nova forma de relacionamento dos homens com o tempo e, de alguma forma, com a história.

História Magistra Vitae – Sobre a dissolução dos topos na história moderna em movimento:

Ao estudar sobre as transformações conceituais por que passaram os termos “história” e “revolução”, Koselleck, entende melhor a emancipação do futuro em relação ao passado. O autor aponta que, no campo da língua alemã, o termo estrangeiro “Historie” que significava, prevalecentemente, o relato, a narrativa de algo acontecido, foi sendo substituído pela palavra alemã “Geschichte”, significando

[...] originalmente o acontecimento em si ou, respectivamente, uma série de ações cometidas ou sofridas. A expressão alude antes ao acontecimento [Geschehen] em si do que seu relato. No entanto, já há muito tempo “Geschichte” vem designando também o relato, assim como “Historie” designa também o acontecimento. Um empresta seu colorido ao outro. Porém, [...] o termo “Geschichte” fortaleceu-se, ao passo que “Historie” foi excluído do uso geral.

Ao passo que “Historie” caia em desuso, outros sentidos, como o de acontecimento [Ereignis] e de representação afluíam ao termo “Geschichte”, reforçando o seu significado na modernidade.

Outro exemplo, analisado por Koselleck, que ilustra a transformação dos termos com o passar do tempo é o que aconteceu com o conceito de “revolução”. Na época de Aristóteles, este conceito significava, grosso modo, um movimento cíclico ou um retorno. Porém, a partir da Revolução Francesa, de 1789, o entendimento deste termo foi profundamente alterado. Desde então, este termo, representa todas as revoluções, mas tendo como base a Revolução Francesa. Uma evolução, segundo o autor, para a forma de “coletivo singular”.

Esta transformação dos termos citados e de outros, estariam atrelados, de acordo com o autor, à mudança estrutural temporal da história passada. “Cícero, referindo-se a modelos helenísticos, cunhou o emprego da expressão historia magistra vitae”. Esta expressão permaneceu ilesa por cerca de dois mil anos. Por ser uma expressão do contexto da oratória, esta carregava em si o potencial de ser explicativa da vida. “O orador é capaz de emprestar um sentido de imortalidade à história como instrução para a vida, de modo a tornar perene o seu valioso conteúdo de experiência” (KOSELLECK, 2006, p.43).

A partir do século XVIII, a velha e potente história [Historie], passou por transformações radicais, e não somente as mudanças impostas pelos iluministas, mas, de acordo com Koselleck, “isso aconteceu na esteira de um movimento que organizou de maneira nova a relação entre passado e futuro. Foi finalmente “a história em si” [die Geschichte selbst] que começou a abrir um novo espaço de experiência” (KOSELLECK, 2006, p.47). Durante estes acontecimentos a nova história [Geschichte] passa a ter o seu próprio espaço temporal. No lugar do exemplo, premissa da Historia Magistra Vitae, surgem diferentes tempos e períodos de experiência, que são passíveis de alternância. Esta mudança se tornou possível, segundo Koselleck, a partir de uma frase de Tocqueville que caracterizou

[...] o advento de um novo tempo que se inicia. Tocqueville, que em toda sua obra mantém-se atento à experiência do surgimento da modernidade como uma ruptura com a temporalidade anterior, disse: “desde que o passado deixou de lançar luz sobre o futuro, o espírito humano erra nas trevas. ” A formulação de Tocqueville refere-se a uma censura da experiência da tradição. Atrás dela oculta-se um processo bastante complexo, que seguia sua trajetória ora de uma maneira invisível, lenta e sorrateira, ora repentina e abruptamente, e que por fim foi acelerado conscientemente (KOSELLECK, 2006, p.47-48).

A predominação da nova história [Geschichte] foi, ao mesmo tempo criticada e ressaltada, justamente por que ela se distanciou do caráter científico da repetição e se aproximou ou até mesmo podemos dizer que se transpôs para as fronteiras da poética. Koselleck diz que “passou-se progressivamente a exigir unidade épica também da narrativa histórica” (KOSELLECK, 2006, p.50).

Apesar de ainda ser um exemplo de moral, a nova história [Geschichte], mudou sua “ênfase nos res factae em direção aos res fictiae”. Esta nova realidade histórica pode ser comprovada, segundo o autor, pelo “fato de que também contos, novelas e romances passaram a ser editados com o subtítulo “histoire véritable” [história verdadeira]”. Desta forma, tanto a ficção, quanto “a história real”, compartilham “de uma elevada exigência de verdade, de um conteúdo de verdade do qual a história [Geschichte] vinha sendo privada desde Aristóteles até Lessing” (KOSELLECK, 2006, p.51).

Critérios históricos do conceito moderno de revolução:

A substituição, dos termos referentes a história, sofridas no seio da língua alemã, acusa uma superação, das noções tradicionais de história, que a dotavam da capacidade pedagógica e exemplar: a Historia Magistra Vitae. Já o conceito de “revolução”, que designava, originalmente, um movimento circular, passa a apontar – a partir da Revolução Francesa – para um estado de organização que não mais retornará à sua origem. Abre-se ao desconhecido, inaugura um novo horizonte de expectativa que não mais está desenhado no campo da experiência.

Que características definem o campo semântico do termo “revolução” depois de 1789? Koselleck, passa a citar oito características que possibilitaram essa nova consciência referente a esse termo.

Em primeiro lugar, Koselleck, cita que se deve “registrar como inédito o fato de que a “revolução” se transformou, a partir de 1789, em um “coletivo singular”. Essa mudança é comparada pelo autor com a transformação sofrida pela história, “que abriga, como “história em si” [Geschichte schlechthin], as possibilidades de todas as histórias singulares, a revolução cristaliza-se em um coletivo singular”, que também possibilita todas as revoluções particulares. Desta forma, a revolução adquire um caráter meta-histórico, se distanciando por completo do seu sentido original. Ou seja, “o conceito adquire um sentido transcendental, tornando-se um princípio regulador tanto para o conhecimento quanto para a ação de todos os homens envolvidos na revolução” (KOSELLECK, 2006, p.69).

Em segundo lugar, é preciso levar-se em conta “a experiência de aceleração do tempo”. O autor cita que “quando Robespierre conclamou seus concidadãos a apressar a revolução para trazer a liberdade à força, pode-se enxergar por trás disso um processo inconsciente de secularização das expectativas apocalípticas de salvação” (KOSELLECK, 2006, p.69). Hoje, devido à explosão demográfica e à capacidade técnica, esta é uma experiência política quotidiana.

Em terceiro lugar, “deve-se reconhecer que todos os prognósticos lançados a partir de 1789 caracterizam-se pelo fato de que contém um coeficiente dinâmico ao qual se atribui um caráter “revolucionário”, seja qual for sua origem” (KOSELLECK, 2006, p.70). Houve, portanto, uma disseminação da tendência revolucionária. Todos os movimentos políticos passam a ter o caráter de revolução.

Em quarto lugar, Koselleck, destaca que o contínuo adiamento das perspectivas futuras, adiou também a perspectiva em direção ao passado. “Abriu-se um novo espaço de experiência cujos pontos de fuga remetiam a diferentes fases da Revolução de 1789” (KOSELLECK, 2006, p.70). Cada observador, podia, a partir desse pressuposto, tomar, não a revolução como um todo, mas a parte que mais lhe interessa e, partindo desse ponto tirar conclusões aplicáveis ao futuro. “A revolução, desde então, transformou-se para todos em um conceito perspectivista dentro da história da filosofia, que apontava para uma direção irreversível” (KOSELLECK, 2006, p.71).

Em quinto lugar, na modernidade o conceito de revolução se diferencia quanto ao trajeto, “a passagem da revolução política à revolução social”. Apesar de todos os movimentos políticos terem em si desordens sociais, Koselleck, destaca que a revolução pós 1789 é diferente quanto “a ideia de que o objetivo de uma revolução política seja a emancipação de todos os homens e a transformação da estrutura social” (KOSELLECK, 2006, p.71). O princípio que tornava esse tipo de concepção possível, de acordo com o autor, se pauta na formula cunhada pelo jovem Marx: “toda revolução desfaz a velha sociedade; nesse sentido, ela é social; toda revolução derruba o velho poder; nesse sentido, ela é política” (KOSELLECK, 2006, p.72).

Em sexto lugar, o termo “revolução”, na sua formulação moderna, pretende, “do ponto de vista geográfico, uma revolução universal e, do ponto de vista temporal, uma revolução permanente, até que seus objetivos fossem cumpridos” (KOSELLECK, 2006, p.72). Ora, se é uma revolução que afeta toda a terra, ela terá que durar, pelo menos até que toda a terra seja afetada pelo ideário propagado.

Em sétimo lugar, deve-se levar em conta o entendimento da revolução na modernidade como meta-histórica, a partir dessa compreensão é preciso entendé-la como uma “reivindicação consciente de dominação por parte daqueles que se viram iniciados nas leis de progressividade de uma revolução entendida como tal. Emerge então o termo revolucionamento [Revolutionierung] e o verbo dele derivado, revolucionar” (KOSELLECK, 2006, p.75).

Em oitavo lugar, Koselleck, destaca a “combinação do que uma revolução em curso realiza e do que ela deve realizar”, produzindo o que ele chamou de “a legitimação da revolução”. Stahl, em 1948, criou o termo “revolução absoluta” (KOSELLECK, 2006, p.75), com o objetivo de localizar no próprio movimento revolucionário a legitimação de suas ações.

Ao passo que a legitimidade da Restauração permanecia atada à noção de tradição, a legitimidade revolucionária tornava-se um coeficiente dinâmico, que direcionava a história a partir de determinadas perspectivas do futuro. Ranke afirmava, ainda em 1841, que a “desgraça da revolução é que ela não é ao mesmo tempo legítima”. Já Metternich reconheceu esse estado de coisas de maneira mais precisa, quando observa, em tom sarcástico, que os próprios legitimistas tornaram legítima a revolução (KOSELLECK, 2006, p.75-76).

Portanto, Koselleck, mostra até o momento que é possível deduzir que, da disputa linguística surge uma nova consciência do tempo por partes dos agentes históricos. Chegamos, então, a entender a abordagem de Koselleck quanto ao tempo histórico. O autor nos mostra que ele, o tempo histórico, é uma criação histórica e, portanto, está sujeito a modificações ao longo da própria história. Ademais, como diz Koselleck, “a história dos conceitos, mesmo quando ideologicamente comprometida, nos lembra que a relação entre as palavras e seu uso é mais importante para a política do que qualquer outra arma” (KOSELLECK, 2006, p.77).

História dos conceitos e história social:

Na segunda parte de sua obra, Koselleck, traz um ensaio interessante em que ele empreende uma busca pela possibilidade de determinação temporal, propondo também o estabelecimento de uma relação muito mais complexa entre a história social e a história dos conceitos. Ilustrando a importância de se compreender esse relacionamento difícil, o autor cita as palavras de Epiteto: “não são os fatos que abalam os homens, mas sim o que se escreve sobre eles”. Essa sentença nos lembra “a força peculiar às palavras, sem as quais o fazer e o sofrer humanos não se experimentam nem tampouco se transmitem” (KOSELLECK, 2006, p.97).

A relação entre a história social e a história dos conceitos, na visão do autor, de princípio pode parecer um pouco lasso, pois, enquanto a história dos conceitos “se ocupa, predominantemente, dos textos e vocábulos”, a história social, “se serve dos textos apenas para deduzir, a partir deles, a existência de fatos e dinâmicas que não estão presentes nos próprios textos” (KOSELLECK, 2006, p.97). No entanto, a análise seguinte mostra que a história social, para ser precisa em suas pesquisas, não pode abrir mão das perspectivas teóricas da história dos conceitos.

Por outro lado, apesar da história dos conceitos, ter certa autonomia metodológica, tendo por base os métodos “da história da terminologia filosófica, da gramática e filologia históricas, da semasiologia e da onomasiologia” (KOSELLECK, 2006, p.97), ela não se constitui um fim em si mesma ao passo que as investigações do campo semântico dos principais conceitos de uma sociedade específica, aponta para um resultado polêmico, que se orienta para o presente, assim como para um planejamento futuro. Portanto, a história dos conceitos e a história social, têm em comum, o fato de precisarem determinar quando um conceito específico passou a ser empregado de forma abrangente, possibilitando uma transformação social e política de profundidade histórica.

O método da história dos conceitos é uma condição sine qua non para as questões da história social exatamente porque os termos que mantiveram significado estável não são, por si mesmos, um indício suficiente da manutenção do mesmo estado de coisas do ponto de vista da história dos fatos; por outro lado, fatos cuja alteração se dá lentamente, a longo prazo, podem ser compreendidos por meio de expressões bastante variadas (KOSELLECK, 2006, p.114).

A disciplina histórica emergente, segundo Koselleck, transformou o passado em história, conhecido de forma neutra, por meio de um método especializado. Agora, um pesquisador agencia os fatos do passado em sucessão e lhes oferece um sentido. Esta história abstrata é, portanto, de responsabilidade do homem, é uma criação, que por sua vez, tem um rumo conhecido. Por isso, Koselleck, diz que ocorreu uma fusão da diacronia e da sincronia. A história continua sendo vista de forma estática, não é entendida como dinâmica, como causadora de novidade no futuro. Assim sendo, “a história social que queira proceder de maneira precisa não pode abrir mão da história dos conceitos, cujas premissas teóricas exigem proposições de caráter estrutural” (KOSELLECK, 2006, p.118).

História, histórias e estruturas temporais formais:

A distinção entre palavra e conceito, está intimamente ligada à problemática da singularidade do conceito, como diz Koselleck. O conceito ultrapassa a utilização da língua, está relacionado àquilo que se deseja saber, conhecer, ou seja o seu contexto. O autor, relembra a ideia desenvolvida no terceiro livro das leis de Platão, em que ele, “investigou a história do nascimento da diversidade constitucional daquela época”. A conclusão desta análise é de que o sentido de uma palavra pode ser determinado pelo seu uso. “Platão trabalhou, hoje poderíamos dizer, com hipóteses temporais, de modo a deduzir uma gradação temporal e histórica da história das constituições a partir desta última” (KOSELLECK, 2006, p.124). Portanto, uma palavra se torna um conceito se a totalidade das circunstâncias político-sociais e empíricas, nas quais e para as quais essa palavra é usada, se agrega a ela. Segundo Koselleck, conceitos são vocábulos nos quais se concentram uma multiplicidade de significados. “Tais formas estão sujeitas a condicionamentos, tal como Aristóteles as tinha analisado na política, tendo criado, a fim de transpô-las, um espaço “histórico” em parceria com seu próprio tempo” (KOSELLECK, 2006, p.125).

O significado e o significante, para Koselleck, coincidem na mesma medida em que a multiplicidade da realidade e da experiência histórica se agrega à capacidade de plurissignificação de uma palavra, de forma que seu significado só possa ser conservado e compreendido por meio dessa mesma palavra. Ao passo que, em uma palavra temos a possibilidade de significado, em um conceito se encontra uma totalidade de diferentes sentidos. Portanto, o conceito, apesar de ser claro, é sempre polissêmico, possibilitando vários entendimentos.

Nosso moderno conceito de história contribuiu para a consolidação das determinações especificamente histórico-temporais de progresso e de regressão, de aceleração e de retardamento. Por meio do conceito “história em si e para si” o moderno campo de experiência foi apreendido assim, como moderno, sob diferentes pontos de vista. O conceito se articula como um plurale tantun [só plural], um coletivo singular que apreende ao mesmo tempo a interdependência dos eventos e a intersubjetividade dos decursos das ações” (KOSELLECK, 2006, p.131).

Quanto à representação, o autor faz um questionamento “de maneira inversa: em virtude de quais categorias a história, em seu sentido moderno, pode ser diferenciada daquelas regularidades identificadas em processos passíveis de repetição? ” (KOSELLECK, 2006, p.131). A questão que se apresenta é: enquanto narração e descrição, o problema é direcionado para várias dimensões temporais. No entanto, os tempos históricos, nos níveis de extensões temporais não se interpenetram, isto equivale a dizer que, os eventos só podem ser narrados ao passo que estruturas são descritas, apesar de ambos não serem analisados ou dispostos em total distância um do outro.

Representação, evento e estrutura:

Koselleck usa o termo “história estrutural” (KOSELLECK, 2006, p.135), para se referir à estrutura na história social. Essas estruturas, são capazes de ultrapassar o campo das experiências cronologicamente registradas e por serem abrangentes, estas, podem integrar também as experiências de eventos cotidianos. Portanto, no campo da experiência do movimento histórico, estrutura e evento adquirem diferentes extensões temporais. Ao passo que a estrutura se aproxima dos campos da descrição, evento e narração, ocorre uma espécie de articulação, que faz com que o evento preceda a estrutura. Por outro lado, a longo prazo, as estruturas, quando objeto de análise, se torna objeto de narrativa. Sobre este ponto Koselleck diz que:

existem também estruturas que são tão duradouras que permanecem guardadas no inconsciente ou na não consciência daqueles que a viveram, ou cujas alterações se dão a tão longo prazo que escapam ao conhecimento empírico dos atingidos. Aqui, somente a sociologia ou a história como ciência do passado podem dar notícia que conduza para além dos campos de experiência das gerações contemporâneas de então (KOSELLECK, 2006, p.137).

Para o autor, “a representação de estruturas aproxima-se mais da descrição, por exemplo, na antiga estatística do absolutismo esclarecido; já a representação dos eventos aproxima-se mais da narração, de forma semelhante à história pragmática do século XVIII” (KOSELLECK, 2006, p.137). Desta forma, os planos temporais nunca se fundem por mais que se relacionem reciprocamente; dependendo da investigação um evento pode ter significado estrutural e “duração” e, portanto, se tornar um evento. Destacando a importância da utilização das estruturas, Koselleck, diz que sem a utilização de tais, ou seja, se valendo apenas da narração, haveria uma diminuição da história. Por outro lado, evento e estrutura, dependendo do nível estrutural a que se encontram, se tornam abstratos ou concretos e não podem ser narrados. Desta forma, o autor raciocina que, somente a partir da aproximação dos conceitos de evento, estrutura e história como ciência é que se pode fazer uma representação histórica que permita compreender e conceitualizar o passado.

Nenhum evento pode ser relatado, nenhuma estrutura representada, nenhum processo descrito sem que sejam empregados conceitos históricos que permitam “compreender” e “conceitualizar” [“begreifen”] o passado. Ora, toda conceitualização [begrifflichkeit] tem alcance mais vasto do que o evento singular que ela ajuda a compreender. As categorias empregadas na narração de um evento singular, por meio da linguagem, não possuem a mesma unicidade temporal que pode ser atribuída ao próprio evento. À primeira vista, essa afirmação é trivial. Entretanto, ela deve ser lembrada para elucidar a exigência estrutural que decorre do emprego não usual de conceitos históricos (KOSELLECK, 2006, p.142).

A história busca transmitir a verdade, para alcança-la é preciso defender algum ponto de vista – algo dos tempos modernos. A história toma algum ponto de vista, mas ela precisa, além de fazer afirmações verdadeiras, admiti-las e relativizá-las. A história busca se defender apresentando êxitos com seus novos métodos (diversidade de fontes) e criticando o subjetivismo e o relativismo.

O acaso como resíduo de motivação na historiografia:

Koselleck analisa o acaso como resíduo de motivação na historiografia e as modificações sofridas por esse termo, tanto no que diz respeito ao seu uso no texto quanto a apropriação feita pelo historiador. Esse conceito, acaso, segundo o autor, aparece em várias obras historiográficas e pode ser “avaliado a partir de um modelo fundamentado na regularidade das ciências naturais, o acaso parece constituir essência de toda história, mas o caráter datado dessas fórmulas salta aos olhos” (KOSELLECK, 2006, p.147).

O acaso, portanto, é, segundo Koselleck, uma categoria a-histórica, que se encontra prioritariamente no presente. Sua utilização na historiografia marca uma inconsistência de dados, a enunciação de algo hipotético ou uma avaliação pessoal sobre um evento. O autor compara ainda, acaso com fortuna ou sorte, colocando os dois termos dentro do campo mítico, desde o estabelecimento da história moderna.

La Fortune et le hasard sont des mots vides de sens [A Fortuna e o acaso são palavras vazias de sentido], constatou o jovem Frederico; brotaram da cabeça dos poetas e se originaram na mais profunda ignorância de um mundo que deu nomes imprecisos [des noms vagues] a efeitos de causas desconhecidas.

Ponto de vista, perspectiva e temporalidade – Contribuição à apresentação historiográfica da história:

O tempo histórico, pode ser entendido, como cita Koselleck, porém, para que se possa ter um dimensionamento histórico desse tempo é preciso considerar a assimetria existente entre futuro e passado, paralelamente à noção de progresso e de modernidade – como tempo ou momento histórico – fazendo crescer assim, o hiato entre as duas dimensões, formando a hipótese teórica central de que é possível organizar a vastidão de dados dos materiais de pesquisa e produzir um sentido.

Koselleck faz uso das metáforas do espelho, do reflexo ou da verdade nua, referindo-se à visão de contemporaneidade, que está baseada no fundamento da experiência pessoal vivida no tempo presente, o qual, em sua concepção historiográfica, valia-se do recurso das testemunhas oculares.

Um indício inequívoco desse realismo ingênuo, que acredita poder fazer com que a verdade das histórias se manifeste intacta, é a metáfora do espelho. A imagem que o historiador, semelhante ao espelho, deve refletir não deve ser deturpada, empalidecida ou deformada. [...] Uma variante igualmente comum da despreocupação com o ponto de vista epistemológico está a alegoria da “verdade nua e crua”. Neste ponto, não se deve subestimar o impulso, de caráter duradouro, que se expressa a partir dessa metáfora, ou seja, o de permitir que a verdade de uma história fale por si mesma, se quisermos que essa verdade seja de fato conhecida e surta seus devidos efeitos (KOSELLECK, 2006, p.164).

A partir destes conceitos, o historiador foi obrigado a interrogar, em primeira instância, testemunhas oculares, e, em seguida, testemunhas auditivas sobreviventes, de modo a poder investigar fatos e atos verdadeiros. Com o uso da retórica, da poética, dentre outras, o historiador se torna uma espécie de artista, colocado na posição de receptor e condutor de interrogatórios; ao mesmo tempo mantendo-se imparcial e distante.

Koselleck aponta uma dualidade para o historiador: a teoria da história e a realidade das fontes. A ciência histórica leva indagações às suas fontes capazes de permitir a articulação de uma série de eventos que se situam além do que está posto do documento. Sua exegese se dá quando o historiador passa a observar processos e estruturas de longo prazo. Decidir sobre a interpretação de uma história sob o ponto de vista teológico ou econômico não é tarefa relacionada à pesquisa de fontes, é uma questão de premissas teóricas. A partir do estabelecimento dessas premissas é que as fontes começam a falar.

Uma fonte não pode nos dizer nada daquilo que cabe a nós dizer. No entanto, ela nos impede de fazer afirmações que não poderíamos fazer. As fontes têm poder de veto. Elas nos proíbem de arriscar ou de admitir interpretações as quais, sob a perspectiva da investigação de fontes, podem ser consideradas simplesmente falsas ou inadmissíveis. Datas e cifras erradas, falsas justificativas, análises de consciência equivocadas: tudo isso pode ser descoberto por meio da crítica de fontes. As fontes nos impedem de cometer erros, mas não nos revelam o que devemos dizer (KOSELLECK, 2006, p.188).

Sobre a semântica histórica da experiência:

Nesta última parte de sua obra, Koselleck, passa a analisar alguns pares de conceitos antitéticos e assimétricos, como: helenos e bárbaros; cristãos e pagãos; homem e não-homem. Uma interessante abordagem feita pelo autor está relacionada com os conceitos de experiência e expectativa. Para Koselleck, tanto a expectativa quanto a experiência, são categorias capazes de entrecruzar o futuro e o passado. Desta forma, são utilizadas por ele, como instrumentos para lidar e tematizar aquilo que ele chama de tempo histórico, “pois, enriquecidas em seu conteúdo, elas dirigem as ações concretas no movimento social político” (KOSELLECK, 2006, p.308).

Os argumentos, apresentados pelo autor, nestes ensaios finais, reforçam a tese de que a história somente se tornou disponível ao homem quando, do ponto de vista histórico-linguístico, as várias histórias (Historie), se transformaram em uma única história (Geschitchte), o que indicaria um novo espaço de experiência e um novo horizonte de expectativa.  Em outras palavras, isto equivale a dizer que a “história em si” este “singular coletivo” (Geschichte), reunia, a partir de agora, a soma de todas as histórias individuais dentro de uma história universal. Esse conceito possibilita, de prontidão, um maior grau de abstração, uma vez que se reuniu num único conceito uma realidade universal, com uma reflexão totalitária sobre essa realidade.

A construção da história, se dá, a partir do confronto com os vestígios, que carregam traços que podem ser remontados pelo historiador por meio do uso de interpretação dos conceitos. O pesquisador, como que mergulha no passado, ultrapassando suas próprias vivências e recordações, conduzido por perguntas, desejos, esperanças e inquietudes para transformar os vestígios em fontes que dão testemunho da história que ele deseja apreender. Neste ponto, Koselleck, diz que a linguagem das fontes passa a dar o acesso heurístico para a compreensão da realidade passada.

Na gênese da história singular coletiva (Geschichte) todas as histórias foram constituídas pelas experiências vividas e pelas expectativas das que atuam ou que sofrem. Como menciona Koselleck: “a expectativa se realiza no hoje, é futuro presente, voltado para o ainda-não, para o não experimentado, para o que apenas pode ser previsto” (KOSELLECK, 2006, p.310). Portanto, experiência e expectativa constituem-se em formas diferentes, não se coincidindo ao ponto de serem previstas.

Isto pode ser explicado por uma frase do conde Reinhard, que em 1820, depois do inesperado retorno da revolução na Espanha, escreveu a Goethe: “Tendes toda razão, meu caro amigo, no que dizeis a respeito da experiência. Para os indivíduos ela sempre chega tarde demais, para os governos e para o povo ela nunca está disponível” (KOSELLECK, 2006, p.310).

Koselleck, acusa a visão iluminista de mundo, pois ao enxergar o homem fora de suas experiências, toda a Europa foi levada ao pesadelo do Holocausto. Na opinião do autor, a história não é capaz de fornecer exemplos para a vida. Ao contrário, ela pode revelar experiências traumáticas e desastrosas.

Conclusão:

A relação futuro passado, na visão do autor, parece ter se acentuado no contexto da revolução francesa. Nesta ocasião, a experiência do novo, o imprevisto e o tempo histórico sofreram uma mudança de orientação e, por este motivo, Koselleck, faz uma análise mais demorada deste período, observando como esta nova consciência teria se manifestado, pela linguagem, na criação de conceitos de movimentos que pareciam emancipados do passado: ruptura radical, que marca ainda hoje nossa relação com o passado e com o futuro. Ou como dito pelo autor: com o tempo histórico.

Utilizando-se de uma terminologia antropológica, Koselleck, conclui que “entre experiência e expectativa, constitui-se algo como um ‘tempo histórico’” (KOSELLECK, 2006, p.16). Isto é, na forma como cada geração lidou com o seu passado (formando seu campo de experiência) e com seu futuro (construindo um horizonte de expectativa) surgiu uma relação com o tempo que permite que o caracterizemos como tempo histórico. Contudo, a modernidade, diz Koselleck, caracteriza-se pelo progressivo afastamento entre experiência e expectativa:

Passado e futuro jamais chegam a coincidir, assim como uma expectativa jamais pode ser deduzida totalmente da experiência. Uma experiência, uma vez feita, está completa na medida em que suas causas são passadas, ao passo que a experiência futura, antecipada como expectativa, se decompõe em uma infinidade de momentos temporais (KOSELLECK, 2006, p.310).

O tempo, neste novo entendimento, passa a ser não apenas histórico, mas historicizado, uma vez que a forma como cada geração trata desta relação entre futuro passado, irá alterar a realidade a ser vivida. Assim, à medida que o homem experimenta o tempo como uma expectativa, um sempre inédito, um tempo moderno, o futuro se torna irreconhecivelmente desafiador.

Sem prejuízo do chiste político, também aqui se pode mostrar que o que se espera para o futuro está claramente limitado de uma forma diferente do que foi experimentado no passado. As expectativas podem ser revistas, as experiências feitas são recolhidas. Das experiências se pode esperar hoje que elas se repitam e sejam confirmadas no futuro. Mas uma expectativa não pode ser experimentada de igual forma. É claro que nossa expectativa do futuro, quer seja portadora de esperança ou de angústia, quer preveja ou planeje, pode refletir-se na consciência. [...] Sempre as coisas podem acontecer diferentemente do que se espera: esta é apenas uma formulação subjetiva daquele resultado objetivo, de que o futuro histórico nunca é o resultado puro e simples do passado histórico (KOSELLECK, 2006, p.311,312).

Em uma visão geral, podemos concluir que o autor está revestido de um certo grau de pessimismo. Talvez, este sentimento tenha sido aflorado, em Koselleck, devido a atmosfera que pairava sobre a Europa, nos anos 1960 e 1970, fortemente marcados pelo movimento de “contracultura” e pelo descrédito da razão iluminista, levando o historiador a empreender um movimento de frenagem do progresso técnico-mecanicista, que tinha seu suporte político no liberalismo e era conduzido por um futuro nada certo.

quinta-feira, 5 de abril de 2018

VIGIAR E PUNIR. MICHEL FOUCAULT. RESENHA

Michel Foucault
Vigiar e punir – Nascimento da prisão

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução Raquel Ramalhete. 40. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

“Meu Deus, tende piedade de mim! Jesus, socorrei-me! ”

Um apelo assim certamente procede de um ser que se encontra em extremo desespero. De fato, os gritos aterrorizados, vinham de Robert-François Damiens, condenado por parricídio, no ano 1757. Damiens vivia em Paris, na época dos suplícios, que eram castigos infligidos a quem cometesse algum delito. A sentença de Robert-François foi: ter a carne dos mamilos, dos braços, das coxas e da barriga das pernas arrancada com tenazes; a mão direita (segurando a faca que serviu como arma do crime) queimada com fogo de enxofre; as feridas cobertas com chumbo derretido, óleo fervente, piche, cera quente e enxofre; o corpo puxado e desmembrado por quatro cavalos; o cadáver reduzido a cinzas e elas espalhadas aos quatro ventos.

Certamente essa punição não era para ser vista por quem tivesse estômago fraco. Mas, a execução, na prática, teve seus revezes, e o sofrimento de Damiens foi grandemente aumentado. As tenazes, afiadas com certeza, não foram suficientes para arrancar a carne com facilidade, sendo necessário que o carrasco desse repetidos puxões antes de conseguir arrancá-las. Os cavalos não puderam, sozinhos, desmembrar o criminoso. O carrasco precisou ajudar. Com uma faca, cortou as ligações dos braços e das pernas até quase o osso, para que finalmente, com mais alguns puxões, os braços e pernas fossem arrancados. O relato de testemunhas diz que ele ainda estava vivo quando o tronco foi jogado na fogueira.

Esse cruel relato fora retirado, por Michel Foucault, da “Gazette d’Amsterdam” e apresentado como introdução de seu livro Vigiar e Punir – História da Violência nas Prisões, ilustrando assim, o primeiro capítulo, “O corpo dos condenados”.

O corpo dos condenados

Os suplícios eram considerados como rituais políticos, uma função jurídico-política, parte integrante das cerimônias de manifestação do poder. Desta forma, a execução pública, com seus requintes de crueldade, era mais uma manifestação de força, por parte do governante, do que de fato, um ato de justiça. Era sobretudo, uma afirmação da correlação de forças que dava poder à lei. Portanto a cerimônia deveria ser aterrorizante. O que estava por detrás não era a economia do exemplo, mas a política do medo.

Os suplícios eram, desta forma, dirigidos ao povo. Ao aplicar os castigos, tendo o povo como plateia, pretendia-se que estes adotassem, talvez movidos pelo medo, uma postura de submissão às leis do soberano. Porém, não foram raras as vezes em que o tiro saiu pela culatra. O povo assumia, por vezes, uma atitude ambígua, invertendo os papeis, apoiando os criminosos e os transformando em heróis e ridicularizando os poderes da justiça.

Essas ações de revolta e inversão dos papeis no suplício, ocorria especialmente, motivados pela agitação dos mais pobres, que não tinham a possibilidade de serem ouvidos na justiça, podendo em breve serem executados da mesma forma, mesmo que injustamente. Todo esse movimento levou, os reformadores dos séculos XVIII e XIX, a exigirem a suspensão dos suplícios. Segundo Foucault, o que levara ao abandono da liturgia dos suplícios foi, portanto, o medo político dos efeitos desses rituais e não algum sentimento de humanidade para com os condenados.

A ostentação dos suplícios

A justiça era utilizada para regulamentar os suplícios. Segundo Foucault, os suplícios não eram aplicados de forma despreparada, mas envolviam uma técnica de punição direcionada ao corpo. Portanto, era uma arte quantitativa do tormento, que exigia dos executores um cálculo, não exato, mas que mostrasse certo grau de sofrimento sem que o criminoso morresse antes do término do procedimento supliciante. Portanto, o suplício não é simplesmente a privação do direito de viver, mas aplicação graduada e calculada de sofrimentos. Estes sofrimentos podem ir desde a decapitação – redução do sofrimento em um só gesto -, que seria o grau zero do suplício, até o esquartejamento que eleva o sofrimento quase ao infinito. Além disso, poderia ser infligido ao criminoso o suplício por meio do enforcamento, da fogueira ou da roda, na qual se agoniza muito tempo.

O Lema da justiça, na época dos suplícios era: “Temos o Dever de Trazer à Luz a Verdade do Crime”. Desta forma, Foucault, diz que a pena era calculada detalhadamente seguindo regras que envolviam o número dos golpes desferidos, o tempo que o condenado deveria ficar na fogueira ou na roda e se o “paciente” deveria ser estrangulado após a tortura e antes que viesse a óbito e que parte deveria ser mutilada, condicente com cada delito cometido. Todo esse preparativo visava garantir que o suplício fosse marcante, que desonrasse o supliciado. Desta forma, cumpriria a função de banir o crime junto com o criminoso, produzindo uma memória, nos espectadores, de que o crime não compensa.

O processo criminal, o qual o criminoso era condenado, produzia “verdades” que eram escritas, tornando-se documentos inescusáveis. Porém, tais verdades eram obtidas de forma secreta, tanto para o público quanto para o acusado –que por muitas vezes desconheciam o motivo de sua acusação, até o momento em que, os investigadores, juntavam provas suficientes para condena-lo. Nos interrogatórios eram utilizadas várias formas de tortura, chamadas de suplícios da verdade, que visavam a confissão do crime. Portanto, o próprio acusado participava da produção da verdade penal, que era sua condenação final. No entanto, mesmo que o acusado resistisse a tortura e não confessasse o crime, os documentos escritos, obtidos pelos investigadores de modo secreto, já seriam suficientes para a condenação do indivíduo.

O corpo interrogado no suplício era, ao mesmo tempo, o alvo em que seria aplicado o castigo e do qual se tiraria, por meio da extorsão, a verdade. O cálculo da pena procurava reparar os prejuízos sofridos pelo Estado, pela sociedade e também a vingança contra o desordeiro que afrontava a soberania e a ordem. Desta forma, o suplício como função jurídico-política, ocorria para a reconstrução da soberania lesada.

A punição generalizada

Foucault, relata neste capítulo, a forma com que a justiça do soberano era aplicada ao povo. As ilegalidades cometidas, em especial pelo povo, deveriam ser reprimidas com rigorosidade. A conservação do poder estava em jogo, de modo que, não se poderia deixar impunes os crimes, pois estes poderiam vir a constituir em rebelião contra os poderes estabelecidos.

O povo, a quem se destinavam os suplícios, por um longo tempo, pareceu aceitar estes como revelador de verdades e agente de poder. No suplício, ocorria uma integração do crime com o castigo, sendo aplicado diretamente no corpo supliciado. Comparando esta citação com os discursos dos reformadores, chegamos à conclusão de que as estratégias para controle e manutenção do poder se coincidem. Durante os governos absolutistas, bem como no desenvolvimento da sociedade capitalista, uma necessidade era premente: punir com segurança as infrações, assim como controlar e codificar todas as práticas ilícitas, com o roubo, assumindo a dianteira.

Os reformadores viram a necessidade de substituírem os suplícios dos corpos, expostos a violência de grau superior à violência por eles cometida, pelo suplício penal, que não corresponde a qualquer punição corporal, mas sim, é uma produção diferenciada de sofrimentos, um ritual organizado para marcação das vítimas e manifestação do poder que pune. Os novos tempos exigiam uma justiça que pune os crimes cometidos, e não uma justiça que se vingue dos crimes praticados. O que frearia as ações ilícitas, a partir de agora, seria a certeza de ser punido e não mais o abominável teatro da punição do corpo.

A mitigação das penas

A suavização das penas, segundo Foucault, faz parte de uma metodologia moderna de punição em que os administradores das penalidades estariam de acordo com uma mecânica natural. A punição, no novo sistema penal, deveria levar o criminoso a reconhecer que um delito não compensa, tornando-o sem atração, antes ou após a aplicação do castigo.

Foucault descreve os sinais-obstáculos que “devem constituir o novo arsenal das penas”. Para que esses sinais-obstáculos funcionem será preciso que eles sejam pouco arbitrários e correspondam à mecânica das forças. Estes sinais-obstáculos seriam pouco arbitrários no sentido de promoverem uma sanção penal ideal, ou seja, adotar-se-ia uma pena proporcional ao crime cometido. Portanto, haveria a necessidade de conformidade entre a pena e o crime. “Assim, para quem a contempla, ela será infalivelmente o sinal do crime que castiga; e para quem sonha com o crime, a simples ideia do delito despertará o sinal punitivo”. Os sinais-obstáculos corresponderiam à mecânica das forças, porque adviriam dos fatos sociais e ao mesmo tempo se fundamentariam na natureza das coisas. Deste modo, ocorreria a diminuição da atração pelo desejo de cometer um crime, aumentando o medo da pena, tornando-o mais temível, tornando maiores as desvantagens do crime em relação com as vantagens da ilegalidade.

Um avanço no método adotado nas prisões ocorreu com o “Código de 1791” que previa a morte para os traidores e os assassinos e para os outros crimes penas de no máximo 20 anos. Criou-se assim, penas regressivas, nas quais o preso inicialmente fica em uma cela totalmente escura e solitária, acorrentado nos pés e nas mãos e alimentando-se de pão e água. Durante essa primeira fase ele terá trabalhará dois e posteriormente três dias na semana. Na segunda fase, a cela recebe iluminação, o preso é acorrentado somente na cintura e trabalhará todos os dias da semana, além de ser remunerado. Na terceira fase, o preso poderá optar por trabalhar junto com outros presos e sua comida será proporcional às suas atividades. A quarta fase, tem como objetivo produzir no condenado interesse pelo castigo, fazendo-o ver a vantagem deste, considerando-o natural.

No novo método penal, segundo Foucault, o condenado é visto como uma espécie de propriedade rentável, um escravo posto a servidão de todos. Ilustrando este ponto, Foucault cita o caso em que ladrões que criaram obstáculos nas estradas para praticar um delito terão que concertá-las como punição. Assim, estes seriam mais úteis servindo ao Estado em uma espécie de escravidão proporcional a gravidade de seu delito do que ter seu corpo supliciado e gerar mais custos ao Estado, gerando, deste modo, pontos positivos à economia pública.

A mudança e o afastamento dos rituais do Antigo Regime ocorreram por meio de representações que passaram, aos poucos, a permear na mentalidade dos adultos que aprenderam a lição que devia ser ensinada aos filhos, eliminando, devagar, e ideia de penas supliciantes.

Nos Estados Unidos e na Europa, a partir da segunda metade do século XVIII e início do século XIX, começou-se a repensar o castigo e tudo que o envolvia. Inúmeros projetos de reforma penal foram criados. Surgiu uma nova teoria da lei e do crime; nova justificação moral ou política do direito de punir; aboliu-se as antigas ordenanças; houve a supressão dos costumes e redigiu-se novos códigos. Despontou-se assim, uma nova era para a justiça penal, com grandes transformações institucionais; códigos explícitos e gerais; regras unificadas de procedimento; existência de júris e penas com um caráter essencialmente corretivo.

Esta tendência acentuou-se depois do século XIX. Segundo Foucault, as punições se tornaram cada vez menos físicas e se tornam mais administrativas. Desta forma, em pouco mais de dois séculos desapareceu o corpo supliciado, esquartejado, amputado, marcado simbolicamente no rosto ou no ombro, exposto vivo ou morto, dado como espetáculo. O corpo não mais é o alvo da repressão penal. A justiça não pode mais ter ligação com o exercício da violência. Os novos métodos penais são pautados na vergonha de punir, pois, matar ou ferir já não é mais a força desejável.

A liberdade passa, a partir do século XIX, a ser considerada ao mesmo tempo como um bem e um direito. Portanto, as penas judiciais não se pautam mais na relação castigo-corpo, mas o corpo era colocado num sistema de coação e de privação, de obrigações e de interdições, e os castigos aplicados são a prisão, a reclusão, a deportação ou os trabalhos forçados. Esse método penal visava atingir algo que não propriamente o corpo.

A anulação da dor pode ser observada nos rituais de execução capital para crimes hediondos. Por exemplo, a partir de 1792, passa-se a utilizar a guilhotina como máquina adequada aos novos métodos de punição capital. Anteriormente utilizada para a execução das penas dos nobres, a decapitação na guilhotina, provia uma morte que dura apenas um instante, sem o furor dos suplícios. Uma morte que, embora visível, é limitada a um instante. No entanto, a grande mudança, estava em que a lei não era aplicada a um corpo real e susceptível à dor, mas um sujeito jurídico detentor, dentre outros direitos, do de existir.

O aparato da justiça punitiva tem que se ater a uma nova realidade, uma realidade incorpórea, que atue sobre o coração, o intelecto, a vontade e as disposições. Desta forma, muda-se o objeto da punição, do corpo para a alma do indivíduo. Foucault diz que esse “afrouxamento” da severidade penal era visto como um fenômeno quantitativo: menos crueldade, menos sofrimento, mais suavidade, mais respeito, mais humanidade.

Os corpos dóceis

Michel Foucault, aborda nesta terceira parte de seu livro, o ressurgimento do interesse pelo corpo em uma perspectiva de utilidade e inteligibilidade. Na época clássica esse interesse pode ser observado na publicação do livro “Homem-máquina”, que aborda a submissão e utilização do corpo, pelo registro anátomo-metafísico, e o funcionamento deste corpo pelo registro técnico-político. Foram criados mecanismos para adestramento do corpo e esquemas para os deixarem dóceis. Os laboratórios para tais experimentos eram os conventos, as escolas, os exércitos e as oficinas, que, pelo uso, deixaram esses métodos mais refinados, sob a forma de disciplinas, que surgem no momento em que nasce uma arte do corpo humano e mecanismos para o tornar mais obediente e útil. “A disciplina fabrica, assim, corpos submissos e exercitados, corpos dóceis” (Foucault, 2012, p. 133). Para Foucault, essas técnicas minuciosas e íntimas, dão origem a uma nova microfísica do poder.

Regredindo o uso dos suplícios, impõe-se as técnicas disciplinares, como a minúcia, o olhar esmiuçante, o controle das mínimas parcelas da vida e do corpo, o ínfimo, o infinito. Essas técnicas permeiam a pedagogia, a medicina, a tática militar e a economia, transformando definitivamente o regime punitivo na época contemporânea e criando o homem do humanismo moderno. Ocorre, a partir deste ponto, uma aceleração das técnicas disciplinares, organizada num corpo de processos e saberes, de descrições, de receitas e de dados. Mas, para se aplicar todo esse conjunto disciplinar, era preciso a distribuição dos indivíduos em espaços definidos: o encarceramento, mantinha juntos os vagabundos e miseráveis; os colégios com internato, segundo o modelo do convento, mantinha as crianças e os adolescentes no mesmo espaço; os quartéis, que fixavam o exército, aglomerava o seu plantel, evitado deserções e conflitos com as populações e autoridades civis; e os hospitais, onde todos estes mecanismos tiveram início, possibilitava o controle e vigilância médica das doenças e perigos de contágios.

Com o surgimento das oficinas, das manufaturas e das fábricas, a distribuição disciplinar do espaço se reveste de um caráter puramente utilitarista. Na segunda metade do século XVII, segundo Foucault, já se via a necessidade de haver uma ligação da distribuição dos corpos com a arrumação espacial do aparelho de produção e as diversas atividades exercidas nestes espaços. Surge assim, o princípio da economia dos espaços, da localização imediata, que Foucault chama de “quadriculamento”. “Cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar, um indivíduo” (Foucault, 2012, p. 138), dispostos em filas, em posições hierarquizadas, segundo a sua habilidade e rapidez, de forma que, percorrendo o corredor central da oficina, seja possível realizar uma vigilância ao mesmo tempo individual e geral.

A repartição do espaço disciplinar da força de trabalho deu origem a divisão do processo de produção e tornou possível o nascimento da grande indústria. A escola buscava também organizar e disciplinar a grande heterogeneidade ali presente. Era preciso fazer com que o espaço escolar funcionasse como uma máquina de ensinar, organizando uma nova economia do tempo de aprendizagem. Neste ponto, os colégios dos jesuítas foram pioneiros, avançando para uma disposição espacial inspirada na hierarquia e na vigilância piramidal. Desta forma, nota-se que, organizar o heterogêneo, o múltiplo, percorrê-lo e dominá-lo, impor-lhe uma ordem é, ao mesmo tempo, uma técnica de poder e um processo de saber.

O tempo e o seu uso, é outro aspecto importante da disciplina e da docilidade dos corpos, de acordo com Foucault. Os antigos esquemas disciplinares das comunidades monásticas, contribuíram em muito para a imposição e a sujeição a horários rígidos. Por exemplo, no século XIX, as congregações religiosas, já haviam dado uma preciosa ajuda quando foi necessário utilizar populações rurais na indústria e acostumá-las ao trabalho em oficinas, nas chamadas fábricas-conventos.

Nas escolas a divisão do tempo também foi sendo fragmentada, as atividades mais foram sendo subjugadas a ordens que exigem uma resposta imediata:

No começo do século XIX, serão propostos para a escola mútua horários como o seguinte: 8,45 entrada do monitor; 8,52 chamada do monitor; 8,56 entrada das crianças e oração; 9 horas entrada nos bancos; 9,04 primeira lousa; 9,08 fim do ditado; 9,12 segunda lousa, etc. (Foucault, 2012, p.145)

Mas, engana-se quem pensa que se trata apenas de cumprir horários. Os novos métodos disciplinares tinham também que melhorar a qualidade do tempo utilizado, e isto seria garantido, através de um controle ininterrupto e da eliminação de tudo que pudesse perturbar e distrair. Um tempo de boa qualidade seria um tempo integralmente útil, sem impurezas nem defeito. A exatidão, a aplicação e a regularidade eram as virtudes fundamentais do tempo disciplinar.

O ato, portanto, seria um aspecto muito importante da disciplina. Assim, a partir da segunda metade do século XVIII, começa-se a dar uma particular atenção ao grau de precisão dos movimentos, a decomposição dos gestos e a maneira de se ajustar o corpo a imperativos temporais. Foucault, chama a esta programação de anátomo-cronológico do comportamento, que é imposta do exterior, porém, controlada do interior.

A melhor relação entre um gesto e a atitude global do corpo contribuiria para a eficácia e rapidez da ação adotada. “Um corpo disciplinado é a base de um gesto eficiente” (Foucault, 2012, p.147) na escola, no desenho da caligrafia, nos quartéis, na marcha militar, na fábrica e na produção. Por isso, através de prescrições explícitas e coercivas, o poder vai sendo introduzido e amarrando o corpo ao objeto. A disciplina corporal cria, desta forma, uma nova economia do tempo, e o tempo disciplinar começa a impor-se na prática pedagógica, na organização militar e nas oficinas.

O “progresso das sociedades” e a “gênese dos indivíduos” são, segundo Foucault, “correlatas das novas técnicas de poder e, mais precisamente, de uma nova maneira de gerir o tempo e torna-lo útil, por recorte segmentar, por seriação, por síntese e totalização” (Foucault, 2012, p.154). Neste novo modelo disciplinar, dá-se atenção especial a relação entre o indivíduo e o coletivo, entre a parte e o todo. Para que fosse mais rentável, mais eficiente, mais útil, mais produtivo, o todo teria de ter um efeito superior à soma das forças elementares que o compunham, o que implicava combinação e cooperação. Nasce, assim, a força do trabalho social, até hoje compreendida desta forma no ocidente. “O corpo singular torna-se um elemento que se pode colocar, mover, articular com outros [...] O corpo se constitui como peça de uma máquina multissegmentar” (Foucault, 2012, p.158). Portanto, Foucault, atribui à disciplina quatro características: celular, orgânica, genética e combinatória. E exerce funções tais como: construir quadros, prescrever manobras, impor exercícios e organizar táticas.

O exame

O novo método disciplinar teve seu esteio, segundo Foucault, na utilização do “exame”. Este conceito, porém, é muito mais abrangente do que um mero jogo de perguntas e respostas e um sistema de notas ou classificações, “o exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza” (Foucault, 2012, p.177). Todas as ciências humanas, desde a psiquiatria até a pedagogia e os procedimentos como diagnóstico clínico e a simples contratação de mão de obra, utilizam o exame.

Michel Foucault, considera tão importante o exame que atribui a ele “uma das condições essenciais para a liberação epistemológica da medicina no fim do século XVIII” (Foucault, 2012, p.178). A organização do hospital como aparelho de examinar possibilitou a mudança de inspeções e visitas médicas irregulares, rápidas e descontínuas para uma observação regular, que punha o doente em situação de exame quase que permanente. Esta nova situação modifica a ideia de hospital como sendo o local de assistência, passando, por força do exame, a um local de formação e aperfeiçoamento científico, de constituição de um saber, de afirmação da disciplina médica.  Essa é uma mudança que também ocorre no espaço escolar, que se torna uma espécie de aparelho de exame ininterrupto que, para além de medir, classificar e sancionar, promove uma comparação permanente de cada um com todos. A escola se torna a representação da troca de saberes e conhecimentos do mestre para os alunos, sendo elaborada ali os princípios da pedagogia como ciência humana. No exército, em função das constantes inspeções e de manobras indefinidamente repetidas, desenvolveu-se um imenso saber tático.

O exame apresenta como consequência relevante, de acordo com Foucault, o controle no nível da individualidade do indivíduo. Técnicas e inovações foram desenvolvidas, nos hospitais, escolas e exército, que possibilitaram identificar, descrever, acompanhar a evolução dos corpos e das mentes, ligadas a uma série de códigos homogeneizantes: código físico, código médico, código escolar e código militar. Todo esse aparato marca o momento da formalização do individual dentro das relações do poder, “o momento em que se efetua o que se poderia chamar a troca do eixo político da individualização” (Foucault, 2012, p.184).

As inovações do campo disciplinar possibilitaram o nascimento das ciências humanas, cuja origem se pauta no “jogo moderno das coerções sobre os corpos, os gestos e os comportamentos” (Foucault, 2012, p.181). Todo conjunto disciplinar com suas anotações, registros, organização de campos comparativos, classificação, categorização, estabelecimento de médias, fixação de normas, executados nas escolas e nos hospitais, permite a “constituição do indivíduo como objeto descritivo e analisável” (Foucault, 2012, p.182), bem como também “a libertação epistemológica das ciências do indivíduo” (Ibid.).

O exame, acompanhado de todo seus mecanismos documentais e organizacionais, apresenta uma novidade surpreendente: cada indivíduo passa a ser um caso. Um caso deixa de ser visto como um conjunto de circunstâncias, como era o entendimento na casuística e na jurisprudência, mas passa a ser um indivíduo tal como pode ser descrito, mensurado, medido e comparado a outros na sua própria individualidade. O indivíduo é aquele que tem de ser (re)treinado, classificado, normalizado, ou mesmo, excluído. Cada um passa a ter seu próprio status, sua própria individualidade, e quanto mais estrito for o seu enquadramento disciplinar, mais estudado e descrito será.

Não é surpresa, portanto, que neste “sistema de disciplina, a criança é mais individualizada que o adulto, o doente o é antes do homem são, o louco e delinquente mais que o normal e o não delinquente” (Foucault, 2012, p.184). As várias ciências existentes, com suas análises psicológicas, foram fundadas a partir dessa troca histórica dos processos de individualização.

“O momento em que passamos de mecanismos histórico-rituais de formação da individualidade a mecanismos científico-disciplinares, em que o normal tomou o lugar do ancestral, e a medida o lugar do status, substituindo assim a individualidade do homem memorável pela do homem calculável, esse momento em que as ciências do homem se tornaram possíveis, é aquele em que foram postas em funcionamento uma nova tecnologia do poder e uma anatomia política do corpo” (Foucault, 2012, p.184-185).

O panoptismo

O século XVIII foi uma época de grandes reformas das instituições médicas. O controle da peste e da lepra movimentaram os espaços destinados a conter o flagelo. “Se é verdade que a lepra suscitou modelos de exclusão que deram até um certo ponto o modelo e como que a forma geral do grande fechamento, já a peste suscitou esquemas disciplinares” (Foucault, 2012, p.188). Deste modo, fica evidente que a arquitetura começa a especializar-se, a articular-se com os problemas da população, da saúde, do urbanismo, e os médicos tiveram nisso uma participação social considerável, junto com os militares, organizando e administrando os espaços. Em meio a este cenário, Foucault diz:

O Panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição. O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre: esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que da para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar (Foucault, 2012, p.190).

O Panóptico foi escolhido por Michel Foucault como elemento de estudo e principal instrumento de análise, porém, ele, intenciona fazer uma história dos espaços que seja ao mesmo tempo uma história dos poderes, abrangendo desde as grandes estratégias da geopolítica até as pequenas táticas do habitat, da arquitetura institucional, da sala de aula, da organização hospitalar, da organização penitenciária, da oficina, da caserna e das prisões. Portanto, Foucault, parte do princípio de que o problema dos espaços é sobretudo um problema histórico-político, e a fixação espacial uma forma econômico-política.

O Panoptismo, para Foucault, não é simplesmente uma nova imagem de um novo sistema prisional, mas ele é o paradigma do esquema geral de funcionamento do poder no mundo moderno.

Para isso, é ao mesmo tempo excessivo e muito pouco que o prisioneiro seja observado sem cessar por um vigia: muito pouco, pois o essencial é que ele se saiba vigiado; excessivo, porque ele não tem necessidade de sê-lo efetivamente. Por isso, Bentham colocou o princípio de que o poder devia ser visível e inverificável. Visível: sem cessar o detento terá diante dos olhos a alta silhueta da torre central de onde é espionado. Inverificável: o detento nunca deve saber se está sendo observado; mas deve ter certeza de que sempre pode sê-lo (Foucault, 2012, p.191).

No projeto arquitetônico do Panóptico os elementos fundamentais que constituem esse poder são: a centralização, a moralização, a eficácia e acima de tudo a individualização. Esta é, de fato, a estrutura unilateral e monolítica do poder em nossos dias: centralizado, anônimo, disseminado e altamente eficaz. Foucault considerou a invenção do Panóptico como um acontecimento na história do espírito humano, e um tipo “de ovo de Colombo na ordem da política” (Foucault, 2012, p.195). Bentham, com sua invenção, deu aos médicos, penalistas, industrias e educadores, o que eles procuravam: um poder contínuo e de custo irrisório, que não necessitava de armas, de violência física ou de coações materiais.

A análise feita por Foucault, até este momento, nos leva a concluir que uma das ideias principais de Vigiar e Punir é, sem dúvida, a de que as sociedades modernas possam ser definidas como sociedades disciplinares, sem, contudo, identificar essa disciplina com uma instituição ou com um aparelho. Esta disciplina, seria uma espécie de poder que a tudo atravessa, não está filiada a nenhum aparelho nem instituição, mas tem o poder de ligar uns aos outros, os prolongar, fazer convergir, obrigando-os a se exercerem de um modo novo. Isto, ainda que se trate de peças ou de engrenagens que pertençam ao Estado de uma forma tão evidente como a polícia e a prisão.

No século XIX, o século das ciências, o pensamento que permeava a sociedade, era de que o modo de vida disciplinado, organizado pelas ciências e pelos cientistas, levariam a humanidade a alcançar uma liberdade plena, porém, a experiência, segundo Foucault, mostrou que, ao se desenvolverem, as disciplinas científicas, conduziram rapidamente ao desaparecimento do homem. As sociedades se tornaram funcionalistas e simultaneamente produto e instrumento da ação do biopoder, que intervêm sobre os corpos, por meio de seus processos de individualização sofisticados, acutilantes e penetrantes, da mesma forma que são elas, as ciências disciplinares, que disponibilizam as imensas técnicas de pesquisa e de registro de dados sobre os indivíduos, os seus corpos, as suas vidas e suas paixões.

O domínio da biopolítica, a sociedade disciplinar, o panoptismo generalizado, são faces diferentes dos mesmos dispositivos escolhidos por um poder que mobiliza e põe em prática novos instrumentos científicos de cálculo, estatística, medida, generalização e abstração, que se destinam ao conhecimento dos corpos humanos, permitindo que o controle e a dominação se tornem cada dia mais eficazes. “Uma sujeição real nasce mecanicamente de uma relação fictícia. De modo que não é necessário recorrer à força para obrigar o condenado ao bom comportamento, o louco à calma, o operário ao trabalho, o escolar à aplicação, o doente à observância das receitas” (Foucault, 2012, p.192).

O processo civilizacional, possibilitado pelas disciplinas, tem seu ápice nas organizações voltadas à dominação, que têm o poder de controlar e de regular inteiramente a vida social. Neste ponto, o Panóptico tem

... um papel de amplificação; organiza-se o poder, não é pelo próprio poder, nem pela salvação imediata de uma sociedade ameaçada: o que importa é tornar mais fortes as forças sociais – aumentar a produção, desenvolver a economia, espalhar a instrução, elevar o nível da moral pública; fazer crescer e multiplicar (Foucault, 2012, p.197).

Para Foucault, portanto, a estabilidade das sociedades altamente desenvolvidas não é senão o resultado de operações reguladoras, conduzidas por organizações de uma grande perfeição administrativa, que se manifestam por meio do exercício da disciplina e do controle, por meio da domesticação, no espaço de vida de cada indivíduo, para fazer dele um colaborador social dócil.

Assim, e devido à sua concepção de dominação, talvez possamos dizer que, para Foucault, as sociedades modernas são também, um pouco, sociedades totalitárias. Encerrando essa terceira parte, o autor, deixa algumas perguntas que dão o que pensar.

Acaso devemos nos admirar que a prisão celular, com suas cronologias marcadas, seu trabalho obrigatório, suas instâncias de vigilância e de notação, com seus mestres de normalidade, que retomam e multiplicam as funções do juiz, tenha-se tornado o instrumento moderno da penalidade? Devemos ainda nos admirar que a prisão se pareça com as fábricas, com as escolas, com os quartéis, com os hospitais, e todos se pareçam com as prisões? (Foucault, 2012, p.214).

Instituições completas e austeras

Retomando a temática da prisão, Michel Foucault, diz que “a prisão é menos recente do que se diz quando se faz datar seu nascimento dos novos códigos” (Foucault, 2012, p.217). De fato, para o autor, antes do nascimento dos códigos penais, já estava em funcionamento um modelo ou modelos de detenção penal. “A forma geral de uma aparelhagem para tornar os indivíduos dóceis e úteis, por meio de um trabalho preciso sobre seu corpo, criou a instituição-prisão, antes que a lei a definisse como a pena por excelência” (Foucault. 2012, p.217). Então, que novidade representou o surgimento da prisão? Provavelmente, a do sentido de humanidade, de justiça social. Além disso, a prisão proporciona, segundo Foucault,

[...] também um momento importante na história desses mecanismos disciplinares que o novo poder de classe estava desenvolvendo: o momento em que aqueles colonizam a instituição judiciária. Na passagem dos dois séculos, uma nova legislação define o poder de punir como uma função geral da sociedade que é exercida da mesma maneira sobre todos os seus membros, e na qual cada um deles é igualmente representado (FOUCAULT, 2012, p.217).

O surgimento da prisão, no século XIX, tornou-se uma coisa tão óbvia que se sobrepôs às punições que faziam parte dos ideais da reforma ocorrida no século XVIII. A prisão era óbvia no sentido de aplicar um castigo igualitário, que correspondia a uma clareza jurídica. A privação da liberdade tinha a função de reparação econômico-moral, já que quantificava exatamente a pena segundo a variável do tempo. A aceitação da prisão se deu no sentido de aparelho transformador dos indivíduos, pois passa a utilizar os mesmos mecanismos existentes no quartel, na escola, na oficina e no hospital. Também, a prisão, parecia ser a forma mais imediata e mais civilizada de todas as penas. Porém, em poucos anos, ficou óbvio “todos os inconvenientes da prisão, e sabe-se que é perigosa, quando não inútil. E, entretanto, não vemos o que pôr em seu lugar. Ela é a detestável solução, de que não se pode abrir mão” (FOUCAULT, 2012, p.218).

Um aparente problema, gerado pelas instituições penais, foi relativo a divisão de controle que se fez necessário, entre juízes e os diretores da prisão e seus vigias, bem como eventualmente com fiscais, sacerdotes e professores. Esses agentes de execução das penas, passam a reivindicar para si uma parte da soberania punitiva. Naturalmente, esta divisão de poder não aconteceu de forma pacífica. Na visão de Foucault, os juízes nunca aceitaram de bom grado a apropriação do controle desse suplemento penitenciário que lhes retirava poderes sobre o detido e o sistema. No entanto, essa contenda ocorreu devido a introdução de relações de saber na justiça criminal. Introduziu-se um saber clínico sobre os condenados, que poderia proporcionar o tratamento das doenças morais. Pois a exigência quanto à prisão era que houvesse uma regeneração do detido. Portanto, o sistema penitenciário receberia das mãos da justiça um condenado e deveria devolver à sociedade um cidadão útil. Surge, então, um novo personagem: o delinquente. Este substitui o infrator e mobiliza todo um estudo individualizado.

O delinquente se distingue do infrator pelo fato de não ser tanto seu ato quanto sua vida o que mais o caracteriza. A operação penitenciária, para ser uma verdadeira reeducação, deve totalizar a existência do delinquente, tornar a prisão uma espécie de teatro artificial e coercitivo onde é preciso refazê-la totalmente. O castigo legal se refere a um ato; a técnica punitiva a uma vida; cabe-lhe, por conseguinte, reconstituir o ínfimo e o pior na forma do saber; cabe-lhe modificar seus efeitos ou preencher suas lacunas, através de uma prática coercitiva (FOUCAULT, 2012, p.238).

Segundo as palavras de Michel Foucault (2012), um novo conceito foi formado para esse novo personagem: o delinquente. A justiça não se interessa mais, apenas pelas causas do crime, ela busca encontrar a história da vida do delinquente, para possa ministrar a sua reeducação. Neste novo conceito, o criminoso existe antes do crime e até mesmo fora dele. Surge, a partir deste momento, segundo Foucault (2012), um novo saber científico, a criminologia, que visa encontrar o indivíduo enquanto delinquente e o delinquente enquanto indivíduo. Nesse labirinto criminológico, a delinquência é considerada uma síndrome mórbida, um desvio patológico da espécie humana. Três tipologias são então apresentadas. O delinquente pode ser: 1) Indivíduo dotado de inteligência e recursos intelectuais superiores à média, que nesse caso, se torna malfeitor por predisposição inata ou por questões morais e sociais externas; 2) sujeitos viciosos, limitados, estúpidos, apático, que se deixam levar por más associações; 3) inaptos ou incapazes, levados ao crime pelos seus instintos pessoais e incapacidades próprias.

Ao passo que a justiça penal se ocupa do infrator, a penitenciária se ocupa de outra pessoa, o delinquente. Uma outra pessoa dentro daquela primeira, que é considerada uma unidade biográfica, núcleo de periculosidade e representante de um tipo de anomalia. Assim, a técnica penitenciária e o delinquente são indissociáveis e impuseram-se aso tribunais e às leis. De acordo com Foucault:

Onde desapareceu o corpo marcado, recortado, queimado, aniquilado do supliciado, apareceu o corpo do prisioneiro, acompanhado pela individualidade do “delinquente”, pela pequena alma do criminoso, que o próprio aparelho do castigo fabricou como ponto de aplicação do poder de punir e como objeto do que ainda hoje se chama a ciência penitenciária (FOUCAULT, 2012, p.241).

Concluindo esse capítulo, Foucault, cita que “a delinquência é a vingança da prisão contra a justiça. Revanche tão temível que pode fazer calar o juiz. É então que os criminologistas se impõem” (2012, p.242). O autor passa, então, a elencar uma série de críticas que foram feitas, ao sistema prisional, desde sua implantação, e que se repetem atualmente: as prisões não diminuem a taxa de criminalidade, funcionam mesmo como quartéis do crime; a detenção provoca a reincidência e, como tal, fabrica delinquentes; vigora uma administração arbitrária, a corrupção, o medo e a incapacidade dos guardas; assiste-se à exploração do trabalho penal, sem caráter educativo. A prisão é, nas palavras de Foucault, um duplo erro econômico: diretamente, pelo custo intrínseco da sua organização; indiretamente, pelo custo da delinquência que ela não reprime. Erros que foram apontados no passado, mas que se mostram atuais, quando examinados à luz dos acontecimentos de hoje.

O carcerário

Ao final de Vigiar e Punir, Foucault, faz uma espécie de síntese, trazendo de volta os temas da disciplina, do adestramento, da docilidade dos corpos, bem como a sua relação com os cinco modelos de referência: família, exército, oficina, escola e poder judiciário. Como novidade, o autor cita o surgimento de Mettray, a colônia penal para jovens, como o paradigma da técnica disciplinar. Sobre esta instituição Foucault diz:

Os chefes e subchefes em Mettray não devem ser exatamente nem juízes, nem professores, nem contramestres, nem suboficiais, nem “pais”, mas um pouco de tudo isso e num modo de intervenção que é específico. São de certo modo técnicos do comportamento: engenheiros da conduta, ortopedistas da individualidade (FOUCAULT, 2012, p.279).

Para Foucault, é aqui, na Mettray, que nasce uma nova categoria de vigilância. O adestramento dos corpos já não é conseguido somente pela observação, mas também pela avaliação contínua do comportamento, utilizando todo um aparato de técnicas organizadas em um saber científico chancelado pela medicina, educação e igreja. Um conhecimento adquirido em escolas especializadas na arte do poder e na técnica de disciplinamento. Portanto, Foucault, considera que a abertura oficial de Mettray, em 1840, é o marco da formação do sistema carcerário que se desenvolveu até o modelo atual e, mais importante do isso, essa data, marca o nascimento da psicologia científica.

Juntamente com a psicologia científica, que abastece de legibilidade o sistema carcerário, Foucault, menciona que houve um encarecimento de “uma nova forma de ‘lei’: um misto de legalidade e natureza, de prescrição e constituição, a norma” (FOUCAULT, 2012, p. 287). Esse controle da normalidade é prontamente exercido pelos profissionais da disciplina, da normalidade e da sujeição, enquadrados pela medicina ou pela psiquiatria, o que lhes dá a chancela cientifica e o apoio do aparelho judiciário. Portanto, se torna um exercício legal do direito de punir.  A técnica de controle das normas, que busca a docilidade dos corpos desviados, tem expandida sua atuação, abrangendo os hospitais, as escolas, as repartições públicas e as empresas privadas. Objetivo é simples: naturalizar o poder da normalização, difundir as técnicas penitenciárias. Essa naturalização, deveria abarcar as disciplinas mais inocentes, montar uma rede carcerária além muros penitenciários, com instituições e com procedimentos parcelares e difusos, reunidos em um só espaço legislativo, disseminados pela sociedade e espalhados, por tanto, a todo corpo social. Esta nova economia de poder arrasta, de acordo com Foucault, “um desejo furioso de parte dos juízes de medir, avaliar, diagnosticar, reconhecer o normal e o anormal; e a honra reivindicada de curar ou readaptar (FOUCAULT, 2012, p.287).

A difusão e multiplicação do poder normalizador lançou novos sujeitos do controle, os juízes da normalidade, que estão operando em todas as esferas da sociedade. Hoje, nos deparamos com o professor-juiz, o médico-juiz, educador-juiz, o assistente social-juiz, o funcionário público-juiz, todos fazendo reinar a universalidade do normativo e do poder normalizador na sociedade moderna. Para Foucault, este é o funcionamento, atual, do poder de vigilância Panóptico. O aparelho de punição, está ativo outra vez, mas agora de acordo com a nova economia do poder.

Se entrarmos, depois da era da justiça “inquisitória”, na da justiça “examinatória”, se, de uma maneira ainda mais geral, o procedimento do exame pôde estender-se tão amplamente à sociedade toda, e dar lugar às ciências do homem, um dos grandes instrumentos disso foi a multiplicidade e o entrecruzamento preciso dos diversos mecanismos de encarceramento. Não quer dizer que da prisão saíram as ciências humanas. Mas se elas puderam se formar e provocar no êpistemê todos os efeitos de profunda alteração que conhecemos, é porque foram levadas por uma modalidade específica e nova do poder: uma certa política do corpo, uma certa maneira de tornar dócil e útil a acumulação dos homens. Esta exigia a implicação de correlações definidas de saber nas relações de poder: reclamava uma técnica para entrecruzar a sujeição e a objetivação: incluía novos procedimentos de individualização. A rede carcerária constitui uma das armaduras desse poder-saber que tornou historicamente possíveis as ciências humanas (FOUCAULT, 2012, p.288).

Concluindo, Foucault, faz uma série de interrogações, a si mesmo e a nós, sobre se o desafio político atual estará na alternativa-prisão ou em algo diferente. E descrevendo seu ponto de vista, diz que a prisão, tal como funciona, num regime Panóptico e numa sociedade como a nossa, não só deve ser modificada, deve ser dispensada.

O SIGNO LINGUÍSTICO NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO E DE SIGNIFICAÇÃO DA IMAGEM DO POEMA – UMA ANÁLISE DA POESIA DE GUIMARÃES FILHO - Parte 4

 4 DA LUZ À ESCURIDÃO E DE NOVO À LUZ – OS CAMINHOS DO POEMA EM “A ROSA ABSOLUTA” DO POETA GUIMARÃES FILHO Um poema começa [...]           ...