“Para
onde quer que me volte, só vejo a morte”. Estas palavras desesperançosas de
Ovídio, célebre poeta latino (43 a.C. – 18 d.C.), ilustram muito bem os
sentimentos de Critilo derramados na sua 10ª carta a Doroteu.
Critilo
inicia sua nova lista das peripécias de Minésio, o Fanfarrão, fazendo alusão às
elegias, que são poemas de cunho melancólicos, eróticos ou de exaltação de
personagens ilustres.
Quis, amigo, compor sentidos versos
A uma longa ausência e, para encher-meDe ternas expressões, de imagens tristes,
À banca fui sentar-me com projeto
De ler primeiramente algumas obras
No meu já roto, destroncado Ovídio.
Abri-o nas saudosas elegias; (p.146)
O
temível governador de Chile, se vale de relatos, encomendados, que visam enaltecê-lo
com uma glória que a ele não pertence. Pois, como pode um falastrão que não tem
temor dos céus receber honrarias de homem abnegado e misericordioso?
Em vez
de compará-lo aos personagens santos, citados nas Santas Escrituras, Critilo,
compara, os feitos do poderoso chefe, aos feitos dos personagens das obras de
Ovídio.
E quando me embebia na leitura
Dos casos lastimosos, que ele pintaNa passagem que fez ao Ponto Euxínio,
Encontro aqueles versos que descrevem
As ondas decúmanas: de repente
Me sobe ao pensamento que estas eram
Do nosso Fanfarrão imagem viva. (p.146)
Ovídio,
em seus poemas, usa seres imaginários parcialmente humanos, que nas suas ações
e comportamentos lendários, descreve o lado bestial da humanidade. Despidos da
razão e livres das convenções da sociedade humana, os seres mitológicos,
podem se entregar aos seus instintos e vontades.
Como
exemplo, podemos citar a descrição dos centauros, que compõem dois fragmentos
de “Metamorfoses”, de Ovídio, na parte que é conhecida como a batalha com os
Lápitas da Tessália na Grécia.
Pierre
Grimal (1992), descreve os centauros como seres monstruosos, meio homem, meio
cavalo. Têm busto de homem e às vezes, também as pernas, mas a parte posterior
do corpo, a partir do busto, é de cavalo e, pelo menos na época clássica, têm
quatro patas de cavalo e dois braços de homem. Vivem nas montanhas e nas
florestas, alimentam-se de carne crua e têm costumes extremamente brutais.
(GRIMAL, Dicionário da Mitologia, Difel, Lisboa, 1992).
Ao
comparar Minésio a seres mitológicos, Critilo, faz uma denúncia do
comportamento bestial que o governante corrupto adota, não respeitando os
outros seres humanos, nem considerando as leis divinas.
Finalizando
sua 10ª carta, Critilo prossegue com suas comparações:
Eu creio, Doroteu, que tu já leste
Que um César dos romanos pretenderaVestir ao seu cavalo a nobre toga
Dos velhos senadores. (p.154)
A
lembrança que surge na mente de Critilo, ao contemplar as ações exercidas por
Minésio, o Fanfarrão, é a da figura do César Romano, Caio Calígula, que aos 25
anos recebeu o título de Augusto César. O governo de Calígula foi marcado por
gastos exorbitantes, impostos altíssimos e a total falta de freios. Sua crueldade
com os presos e os escravos era tão grande quanto sua depravação na vida
sexual. Divertia-se fazendo torturar condenados na frente de seus familiares. Tomava
as posses de suas vítimas e não admitia ser contrariado em nada.
Calígula
nomeou senador seu cavalo, Incitatus, para quem construiu um palácio de
mármore. Antes disso, havia nomeado um cavalo como sacerdote e designado uma
guarda pretoriana para tomar conta de seu sono. Sua ideia era humilhar o Senado
romano e mostrar que se podia nomear um cavalo sacerdote e senador, podia fazer
qualquer coisa com a vida de qualquer pessoa. Calígula acreditava no terror
como arma de poder e gostava de ser odiado, dizia: “Oderint dum metuant! ” (Que
odeiem enquanto tremem de medo), referindo-se ao povo.
Esta história
Pode servir de fábula, que mostreQue muitos homens mais que as feras brutos,
Na verdade conseguem grandes honras.
Mas ah! Prezado amigo, que ditosa
Não fora a nossa Chile, se antes visse
Adornado um cavalo com insígnias
De general supremo, do que ver-se
Obrigada a dobrar os seus joelhos
Na presença de um chefe, a quem os deuses
Somente deram a figura de homem! (p.154)
O povo preferia agora ser governado por um cavalo, ou seja, não ser governado, do que viver sob a tirania do chefe.