Michel Foucault
Vigiar e punir –
Nascimento da prisão
FOUCAULT,
Michel. Vigiar e punir: nascimento
da prisão; tradução Raquel Ramalhete. 40. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
“Meu
Deus, tende piedade de mim! Jesus, socorrei-me! ”
Um
apelo assim certamente procede de um ser que se encontra em extremo desespero.
De fato, os gritos aterrorizados, vinham de Robert-François Damiens, condenado
por parricídio, no ano 1757. Damiens vivia em Paris, na época dos suplícios,
que eram castigos infligidos a quem cometesse algum delito. A sentença de
Robert-François foi: ter a carne dos mamilos, dos braços, das coxas e da
barriga das pernas arrancada com tenazes; a mão direita (segurando a faca que
serviu como arma do crime) queimada com fogo de enxofre; as feridas cobertas
com chumbo derretido, óleo fervente, piche, cera quente e enxofre; o corpo
puxado e desmembrado por quatro cavalos; o cadáver reduzido a cinzas e elas
espalhadas aos quatro ventos.
Certamente
essa punição não era para ser vista por quem tivesse estômago fraco. Mas, a
execução, na prática, teve seus revezes, e o sofrimento de Damiens foi
grandemente aumentado. As tenazes, afiadas com certeza, não foram suficientes
para arrancar a carne com facilidade, sendo necessário que o carrasco desse
repetidos puxões antes de conseguir arrancá-las. Os cavalos não puderam,
sozinhos, desmembrar o criminoso. O carrasco precisou ajudar. Com uma faca,
cortou as ligações dos braços e das pernas até quase o osso, para que
finalmente, com mais alguns puxões, os braços e pernas fossem arrancados. O
relato de testemunhas diz que ele ainda estava vivo quando o tronco foi jogado
na fogueira.
Esse
cruel relato fora retirado, por Michel Foucault, da “Gazette d’Amsterdam” e
apresentado como introdução de seu livro Vigiar e Punir – História da Violência
nas Prisões, ilustrando assim, o primeiro capítulo, “O corpo dos condenados”.
O corpo dos
condenados
Os
suplícios eram considerados como rituais políticos, uma função
jurídico-política, parte integrante das cerimônias de manifestação do poder.
Desta forma, a execução pública, com seus requintes de crueldade, era mais uma
manifestação de força, por parte do governante, do que de fato, um ato de
justiça. Era sobretudo, uma afirmação da correlação de forças que dava poder à
lei. Portanto a cerimônia deveria ser aterrorizante. O que estava por detrás
não era a economia do exemplo, mas a política do medo.
Os
suplícios eram, desta forma, dirigidos ao povo. Ao aplicar os castigos, tendo o
povo como plateia, pretendia-se que estes adotassem, talvez movidos pelo medo,
uma postura de submissão às leis do soberano. Porém, não foram raras as vezes
em que o tiro saiu pela culatra. O povo assumia, por vezes, uma atitude
ambígua, invertendo os papeis, apoiando os criminosos e os transformando em
heróis e ridicularizando os poderes da justiça.
Essas
ações de revolta e inversão dos papeis no suplício, ocorria especialmente,
motivados pela agitação dos mais pobres, que não tinham a possibilidade de
serem ouvidos na justiça, podendo em breve serem executados da mesma forma,
mesmo que injustamente. Todo esse movimento levou, os reformadores dos séculos
XVIII e XIX, a exigirem a suspensão dos suplícios. Segundo Foucault, o que
levara ao abandono da liturgia dos suplícios foi, portanto, o medo político dos
efeitos desses rituais e não algum sentimento de humanidade para com os
condenados.
A ostentação dos
suplícios
A
justiça era utilizada para regulamentar os suplícios. Segundo Foucault, os
suplícios não eram aplicados de forma despreparada, mas envolviam uma técnica
de punição direcionada ao corpo. Portanto, era uma arte quantitativa do
tormento, que exigia dos executores um cálculo, não exato, mas que mostrasse
certo grau de sofrimento sem que o criminoso morresse antes do término do
procedimento supliciante. Portanto, o suplício não é simplesmente a privação do
direito de viver, mas aplicação graduada e calculada de sofrimentos. Estes
sofrimentos podem ir desde a decapitação – redução do sofrimento em um só gesto
-, que seria o grau zero do suplício, até o esquartejamento que eleva o
sofrimento quase ao infinito. Além disso, poderia ser infligido ao criminoso o
suplício por meio do enforcamento, da fogueira ou da roda, na qual se agoniza
muito tempo.
O
Lema da justiça, na época dos suplícios era: “Temos o Dever de Trazer à Luz a
Verdade do Crime”. Desta forma, Foucault, diz que a pena era calculada
detalhadamente seguindo regras que envolviam o número dos golpes desferidos, o
tempo que o condenado deveria ficar na fogueira ou na roda e se o “paciente”
deveria ser estrangulado após a tortura e antes que viesse a óbito e que parte
deveria ser mutilada, condicente com cada delito cometido. Todo esse
preparativo visava garantir que o suplício fosse marcante, que desonrasse o
supliciado. Desta forma, cumpriria a função de banir o crime junto com o
criminoso, produzindo uma memória, nos espectadores, de que o crime não
compensa.
O
processo criminal, o qual o criminoso era condenado, produzia “verdades” que
eram escritas, tornando-se documentos inescusáveis. Porém, tais verdades eram
obtidas de forma secreta, tanto para o público quanto para o acusado –que por
muitas vezes desconheciam o motivo de sua acusação, até o momento em que, os
investigadores, juntavam provas suficientes para condena-lo. Nos
interrogatórios eram utilizadas várias formas de tortura, chamadas de suplícios
da verdade, que visavam a confissão do crime. Portanto, o próprio acusado
participava da produção da verdade penal, que era sua condenação final. No
entanto, mesmo que o acusado resistisse a tortura e não confessasse o crime, os
documentos escritos, obtidos pelos investigadores de modo secreto, já seriam suficientes
para a condenação do indivíduo.
O
corpo interrogado no suplício era, ao mesmo tempo, o alvo em que seria aplicado
o castigo e do qual se tiraria, por meio da extorsão, a verdade. O cálculo da
pena procurava reparar os prejuízos sofridos pelo Estado, pela sociedade e
também a vingança contra o desordeiro que afrontava a soberania e a ordem.
Desta forma, o suplício como função jurídico-política, ocorria para a
reconstrução da soberania lesada.
A punição
generalizada
Foucault,
relata neste capítulo, a forma com que a justiça do soberano era aplicada ao
povo. As ilegalidades cometidas, em especial pelo povo, deveriam ser reprimidas
com rigorosidade. A conservação do poder estava em jogo, de modo que, não se
poderia deixar impunes os crimes, pois estes poderiam vir a constituir em
rebelião contra os poderes estabelecidos.
O
povo, a quem se destinavam os suplícios, por um longo tempo, pareceu aceitar
estes como revelador de verdades e agente de poder. No suplício, ocorria uma
integração do crime com o castigo, sendo aplicado diretamente no corpo
supliciado. Comparando esta citação com os discursos dos reformadores, chegamos
à conclusão de que as estratégias para controle e manutenção do poder se
coincidem. Durante os governos absolutistas, bem como no desenvolvimento da
sociedade capitalista, uma necessidade era premente: punir com segurança as
infrações, assim como controlar e codificar todas as práticas ilícitas, com o
roubo, assumindo a dianteira.
Os
reformadores viram a necessidade de substituírem os suplícios dos corpos,
expostos a violência de grau superior à violência por eles cometida, pelo
suplício penal, que não corresponde a qualquer punição corporal, mas sim, é uma
produção diferenciada de sofrimentos, um ritual organizado para marcação das
vítimas e manifestação do poder que pune. Os novos tempos exigiam uma justiça
que pune os crimes cometidos, e não uma justiça que se vingue dos crimes
praticados. O que frearia as ações ilícitas, a partir de agora, seria a certeza
de ser punido e não mais o abominável teatro da punição do corpo.
A mitigação das
penas
A
suavização das penas, segundo Foucault, faz parte de uma metodologia moderna de
punição em que os administradores das penalidades estariam de acordo com uma mecânica
natural. A punição, no novo sistema penal, deveria levar o criminoso a
reconhecer que um delito não compensa, tornando-o sem atração, antes ou após a
aplicação do castigo.
Foucault
descreve os sinais-obstáculos que “devem constituir o novo arsenal das penas”.
Para que esses sinais-obstáculos funcionem será preciso que eles sejam pouco
arbitrários e correspondam à mecânica das forças. Estes sinais-obstáculos
seriam pouco arbitrários no sentido de promoverem uma sanção penal ideal, ou
seja, adotar-se-ia uma pena proporcional ao crime cometido. Portanto, haveria a
necessidade de conformidade entre a pena e o crime. “Assim, para quem a
contempla, ela será infalivelmente o sinal do crime que castiga; e para quem
sonha com o crime, a simples ideia do delito despertará o sinal punitivo”. Os
sinais-obstáculos corresponderiam à mecânica das forças, porque adviriam dos
fatos sociais e ao mesmo tempo se fundamentariam na natureza das coisas. Deste
modo, ocorreria a diminuição da atração pelo desejo de cometer um crime,
aumentando o medo da pena, tornando-o mais temível, tornando maiores as
desvantagens do crime em relação com as vantagens da ilegalidade.
Um
avanço no método adotado nas prisões ocorreu com o “Código de 1791” que previa
a morte para os traidores e os assassinos e para os outros crimes penas de no
máximo 20 anos. Criou-se assim, penas regressivas, nas quais o preso
inicialmente fica em uma cela totalmente escura e solitária, acorrentado nos
pés e nas mãos e alimentando-se de pão e água. Durante essa primeira fase ele
terá trabalhará dois e posteriormente três dias na semana. Na segunda fase, a
cela recebe iluminação, o preso é acorrentado somente na cintura e trabalhará
todos os dias da semana, além de ser remunerado. Na terceira fase, o preso poderá
optar por trabalhar junto com outros presos e sua comida será proporcional às
suas atividades. A quarta fase, tem como objetivo produzir no condenado
interesse pelo castigo, fazendo-o ver a vantagem deste, considerando-o natural.
No
novo método penal, segundo Foucault, o condenado é visto como uma espécie de
propriedade rentável, um escravo posto a servidão de todos. Ilustrando este
ponto, Foucault cita o caso em que ladrões que criaram obstáculos nas estradas
para praticar um delito terão que concertá-las como punição. Assim, estes
seriam mais úteis servindo ao Estado em uma espécie de escravidão proporcional
a gravidade de seu delito do que ter seu corpo supliciado e gerar mais custos
ao Estado, gerando, deste modo, pontos positivos à economia pública.
A
mudança e o afastamento dos rituais do Antigo Regime ocorreram por meio de
representações que passaram, aos poucos, a permear na mentalidade dos adultos
que aprenderam a lição que devia ser ensinada aos filhos, eliminando, devagar,
e ideia de penas supliciantes.
Nos
Estados Unidos e na Europa, a partir da segunda metade do século XVIII e início
do século XIX, começou-se a repensar o castigo e tudo que o envolvia. Inúmeros
projetos de reforma penal foram criados. Surgiu uma nova teoria da lei e do crime;
nova justificação moral ou política do direito de punir; aboliu-se as antigas
ordenanças; houve a supressão dos costumes e redigiu-se novos códigos.
Despontou-se assim, uma nova era para a justiça penal, com grandes
transformações institucionais; códigos explícitos e gerais; regras unificadas
de procedimento; existência de júris e penas com um caráter essencialmente
corretivo.
Esta
tendência acentuou-se depois do século XIX. Segundo Foucault, as punições se
tornaram cada vez menos físicas e se tornam mais administrativas. Desta forma,
em pouco mais de dois séculos desapareceu o corpo supliciado, esquartejado,
amputado, marcado simbolicamente no rosto ou no ombro, exposto vivo ou morto,
dado como espetáculo. O corpo não mais é o alvo da repressão penal. A justiça
não pode mais ter ligação com o exercício da violência. Os novos métodos penais
são pautados na vergonha de punir, pois, matar ou ferir já não é mais a força
desejável.
A
liberdade passa, a partir do século XIX, a ser considerada ao mesmo tempo como
um bem e um direito. Portanto, as penas judiciais não se pautam mais na relação
castigo-corpo, mas o corpo era colocado num sistema de coação e de privação, de
obrigações e de interdições, e os castigos aplicados são a prisão, a reclusão,
a deportação ou os trabalhos forçados. Esse método penal visava atingir algo
que não propriamente o corpo.
A
anulação da dor pode ser observada nos rituais de execução capital para crimes
hediondos. Por exemplo, a partir de 1792, passa-se a utilizar a guilhotina como
máquina adequada aos novos métodos de punição capital. Anteriormente utilizada
para a execução das penas dos nobres, a decapitação na guilhotina, provia uma
morte que dura apenas um instante, sem o furor dos suplícios. Uma morte que,
embora visível, é limitada a um instante. No entanto, a grande mudança, estava
em que a lei não era aplicada a um corpo real e susceptível à dor, mas um
sujeito jurídico detentor, dentre outros direitos, do de existir.
O
aparato da justiça punitiva tem que se ater a uma nova realidade, uma realidade
incorpórea, que atue sobre o coração, o intelecto, a vontade e as disposições.
Desta forma, muda-se o objeto da punição, do corpo para a alma do indivíduo. Foucault
diz que esse “afrouxamento” da severidade penal era visto como um fenômeno
quantitativo: menos crueldade, menos sofrimento, mais suavidade, mais respeito,
mais humanidade.
Os corpos dóceis
Michel
Foucault, aborda nesta terceira parte de seu livro, o ressurgimento do
interesse pelo corpo em uma perspectiva de utilidade e inteligibilidade. Na
época clássica esse interesse pode ser observado na publicação do livro
“Homem-máquina”, que aborda a submissão e utilização do corpo, pelo registro
anátomo-metafísico, e o funcionamento deste corpo pelo registro
técnico-político. Foram criados mecanismos para adestramento do corpo e
esquemas para os deixarem dóceis. Os laboratórios para tais experimentos eram
os conventos, as escolas, os exércitos e as oficinas, que, pelo uso, deixaram
esses métodos mais refinados, sob a forma de disciplinas, que surgem no momento
em que nasce uma arte do corpo humano e mecanismos para o tornar mais obediente
e útil. “A disciplina fabrica, assim, corpos submissos e exercitados, corpos
dóceis” (Foucault, 2012, p. 133). Para Foucault, essas técnicas minuciosas e
íntimas, dão origem a uma nova microfísica do poder.
Regredindo
o uso dos suplícios, impõe-se as técnicas disciplinares, como a minúcia, o
olhar esmiuçante, o controle das mínimas parcelas da vida e do corpo, o ínfimo,
o infinito. Essas técnicas permeiam a pedagogia, a medicina, a tática militar e
a economia, transformando definitivamente o regime punitivo na época
contemporânea e criando o homem do humanismo moderno. Ocorre, a partir deste
ponto, uma aceleração das técnicas disciplinares, organizada num corpo de
processos e saberes, de descrições, de receitas e de dados. Mas, para se
aplicar todo esse conjunto disciplinar, era preciso a distribuição dos
indivíduos em espaços definidos: o encarceramento, mantinha juntos os
vagabundos e miseráveis; os colégios com internato, segundo o modelo do
convento, mantinha as crianças e os adolescentes no mesmo espaço; os quartéis,
que fixavam o exército, aglomerava o seu plantel, evitado deserções e conflitos
com as populações e autoridades civis; e os hospitais, onde todos estes
mecanismos tiveram início, possibilitava o controle e vigilância médica das
doenças e perigos de contágios.
Com
o surgimento das oficinas, das manufaturas e das fábricas, a distribuição
disciplinar do espaço se reveste de um caráter puramente utilitarista. Na
segunda metade do século XVII, segundo Foucault, já se via a necessidade de
haver uma ligação da distribuição dos corpos com a arrumação espacial do
aparelho de produção e as diversas atividades exercidas nestes espaços. Surge
assim, o princípio da economia dos espaços, da localização imediata, que
Foucault chama de “quadriculamento”. “Cada indivíduo no seu lugar; e em cada
lugar, um indivíduo” (Foucault, 2012, p. 138), dispostos em filas, em posições
hierarquizadas, segundo a sua habilidade e rapidez, de forma que, percorrendo o
corredor central da oficina, seja possível realizar uma vigilância ao mesmo tempo
individual e geral.
A
repartição do espaço disciplinar da força de trabalho deu origem a divisão do
processo de produção e tornou possível o nascimento da grande indústria. A
escola buscava também organizar e disciplinar a grande heterogeneidade ali presente.
Era preciso fazer com que o espaço escolar funcionasse como uma máquina de
ensinar, organizando uma nova economia do tempo de aprendizagem. Neste ponto,
os colégios dos jesuítas foram pioneiros, avançando para uma disposição
espacial inspirada na hierarquia e na vigilância piramidal. Desta forma,
nota-se que, organizar o heterogêneo, o múltiplo, percorrê-lo e dominá-lo,
impor-lhe uma ordem é, ao mesmo tempo, uma técnica de poder e um processo de
saber.
O
tempo e o seu uso, é outro aspecto importante da disciplina e da docilidade dos
corpos, de acordo com Foucault. Os antigos esquemas disciplinares das
comunidades monásticas, contribuíram em muito para a imposição e a sujeição a
horários rígidos. Por exemplo, no século XIX, as congregações religiosas, já
haviam dado uma preciosa ajuda quando foi necessário utilizar populações rurais
na indústria e acostumá-las ao trabalho em oficinas, nas chamadas
fábricas-conventos.
Nas
escolas a divisão do tempo também foi sendo fragmentada, as atividades mais
foram sendo subjugadas a ordens que exigem uma resposta imediata:
No começo do século XIX, serão
propostos para a escola mútua horários como o seguinte: 8,45 entrada do
monitor; 8,52 chamada do monitor; 8,56 entrada das crianças e oração; 9 horas
entrada nos bancos; 9,04 primeira lousa; 9,08 fim do ditado; 9,12 segunda
lousa, etc. (Foucault, 2012, p.145)
Mas,
engana-se quem pensa que se trata apenas de cumprir horários. Os novos métodos
disciplinares tinham também que melhorar a qualidade do tempo utilizado, e isto
seria garantido, através de um controle ininterrupto e da eliminação de tudo
que pudesse perturbar e distrair. Um tempo de boa qualidade seria um tempo
integralmente útil, sem impurezas nem defeito. A exatidão, a aplicação e a
regularidade eram as virtudes fundamentais do tempo disciplinar.
O
ato, portanto, seria um aspecto muito importante da disciplina. Assim, a partir
da segunda metade do século XVIII, começa-se a dar uma particular atenção ao grau
de precisão dos movimentos, a decomposição dos gestos e a maneira de se ajustar
o corpo a imperativos temporais. Foucault, chama a esta programação de
anátomo-cronológico do comportamento, que é imposta do exterior, porém,
controlada do interior.
A
melhor relação entre um gesto e a atitude global do corpo contribuiria para a
eficácia e rapidez da ação adotada. “Um corpo disciplinado é a base de um gesto
eficiente” (Foucault, 2012, p.147) na escola, no desenho da caligrafia, nos
quartéis, na marcha militar, na fábrica e na produção. Por isso, através de
prescrições explícitas e coercivas, o poder vai sendo introduzido e amarrando o
corpo ao objeto. A disciplina corporal cria, desta forma, uma nova economia do
tempo, e o tempo disciplinar começa a impor-se na prática pedagógica, na
organização militar e nas oficinas.
O
“progresso das sociedades” e a “gênese dos indivíduos” são, segundo Foucault,
“correlatas das novas técnicas de poder e, mais precisamente, de uma nova
maneira de gerir o tempo e torna-lo útil, por recorte segmentar, por seriação,
por síntese e totalização” (Foucault, 2012, p.154). Neste novo modelo
disciplinar, dá-se atenção especial a relação entre o indivíduo e o coletivo,
entre a parte e o todo. Para que fosse mais rentável, mais eficiente, mais
útil, mais produtivo, o todo teria de ter um efeito superior à soma das forças
elementares que o compunham, o que implicava combinação e cooperação. Nasce,
assim, a força do trabalho social, até hoje compreendida desta forma no
ocidente. “O corpo singular torna-se um elemento que se pode colocar, mover,
articular com outros [...] O corpo se constitui como peça de uma máquina
multissegmentar” (Foucault, 2012, p.158). Portanto, Foucault, atribui à
disciplina quatro características: celular, orgânica, genética e combinatória.
E exerce funções tais como: construir quadros, prescrever manobras, impor
exercícios e organizar táticas.
O exame
O
novo método disciplinar teve seu esteio, segundo Foucault, na utilização do
“exame”. Este conceito, porém, é muito mais abrangente do que um mero jogo de
perguntas e respostas e um sistema de notas ou classificações, “o exame combina
as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza” (Foucault,
2012, p.177). Todas as ciências humanas, desde a psiquiatria até a pedagogia e
os procedimentos como diagnóstico clínico e a simples contratação de mão de
obra, utilizam o exame.
Michel
Foucault, considera tão importante o exame que atribui a ele “uma das condições
essenciais para a liberação epistemológica da medicina no fim do século XVIII”
(Foucault, 2012, p.178). A organização do hospital como aparelho de examinar possibilitou
a mudança de inspeções e visitas médicas irregulares, rápidas e descontínuas
para uma observação regular, que punha o doente em situação de exame quase que
permanente. Esta nova situação modifica a ideia de hospital como sendo o local
de assistência, passando, por força do exame, a um local de formação e
aperfeiçoamento científico, de constituição de um saber, de afirmação da
disciplina médica. Essa é uma mudança
que também ocorre no espaço escolar, que se torna uma espécie de aparelho de
exame ininterrupto que, para além de medir, classificar e sancionar, promove
uma comparação permanente de cada um com todos. A escola se torna a
representação da troca de saberes e conhecimentos do mestre para os alunos,
sendo elaborada ali os princípios da pedagogia como ciência humana. No
exército, em função das constantes inspeções e de manobras indefinidamente
repetidas, desenvolveu-se um imenso saber tático.
O
exame apresenta como consequência relevante, de acordo com Foucault, o controle
no nível da individualidade do indivíduo. Técnicas e inovações foram
desenvolvidas, nos hospitais, escolas e exército, que possibilitaram
identificar, descrever, acompanhar a evolução dos corpos e das mentes, ligadas
a uma série de códigos homogeneizantes: código físico, código médico, código
escolar e código militar. Todo esse aparato marca o momento da formalização do
individual dentro das relações do poder, “o momento em que se efetua o que se
poderia chamar a troca do eixo político da individualização” (Foucault, 2012,
p.184).
As
inovações do campo disciplinar possibilitaram o nascimento das ciências
humanas, cuja origem se pauta no “jogo moderno das coerções sobre os corpos, os
gestos e os comportamentos” (Foucault, 2012, p.181). Todo conjunto disciplinar
com suas anotações, registros, organização de campos comparativos,
classificação, categorização, estabelecimento de médias, fixação de normas,
executados nas escolas e nos hospitais, permite a “constituição do indivíduo
como objeto descritivo e analisável” (Foucault, 2012, p.182), bem como também
“a libertação epistemológica das ciências do indivíduo” (Ibid.).
O
exame, acompanhado de todo seus mecanismos documentais e organizacionais,
apresenta uma novidade surpreendente: cada indivíduo passa a ser um caso. Um caso
deixa de ser visto como um conjunto de circunstâncias, como era o entendimento
na casuística e na jurisprudência, mas passa a ser um indivíduo tal como pode
ser descrito, mensurado, medido e comparado a outros na sua própria
individualidade. O indivíduo é aquele que tem de ser (re)treinado,
classificado, normalizado, ou mesmo, excluído. Cada um passa a ter seu próprio status, sua própria individualidade, e
quanto mais estrito for o seu enquadramento disciplinar, mais estudado e
descrito será.
Não
é surpresa, portanto, que neste “sistema de disciplina, a criança é mais
individualizada que o adulto, o doente o é antes do homem são, o louco e
delinquente mais que o normal e o não delinquente” (Foucault, 2012, p.184). As
várias ciências existentes, com suas análises psicológicas, foram fundadas a
partir dessa troca histórica dos processos de individualização.
“O momento em que passamos de
mecanismos histórico-rituais de formação da individualidade a mecanismos
científico-disciplinares, em que o normal tomou o lugar do ancestral, e a
medida o lugar do status,
substituindo assim a individualidade do homem memorável pela do homem
calculável, esse momento em que as ciências do homem se tornaram possíveis, é
aquele em que foram postas em funcionamento uma nova tecnologia do poder e uma
anatomia política do corpo” (Foucault, 2012, p.184-185).
O panoptismo
O
século XVIII foi uma época de grandes reformas das instituições médicas. O
controle da peste e da lepra movimentaram os espaços destinados a conter o flagelo.
“Se é verdade que a lepra suscitou modelos de exclusão que deram até um certo
ponto o modelo e como que a forma geral do grande fechamento, já a peste
suscitou esquemas disciplinares” (Foucault, 2012, p.188). Deste modo, fica
evidente que a arquitetura começa a especializar-se, a articular-se com os
problemas da população, da saúde, do urbanismo, e os médicos tiveram nisso uma
participação social considerável, junto com os militares, organizando e
administrando os espaços. Em meio a este cenário, Foucault diz:
O Panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição. O
princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma
torre: esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do
anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a
espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior,
correspondendo às janelas da torre; outra, que da para o exterior, permite que
a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia central, e
em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um
escolar (Foucault, 2012, p.190).
O
Panóptico foi escolhido por Michel Foucault como elemento de estudo e principal
instrumento de análise, porém, ele, intenciona fazer uma história dos espaços
que seja ao mesmo tempo uma história dos poderes, abrangendo desde as grandes
estratégias da geopolítica até as pequenas táticas do habitat, da arquitetura institucional, da sala de aula, da
organização hospitalar, da organização penitenciária, da oficina, da caserna e
das prisões. Portanto, Foucault, parte do princípio de que o problema dos
espaços é sobretudo um problema histórico-político, e a fixação espacial uma
forma econômico-política.
O
Panoptismo, para Foucault, não é simplesmente uma nova imagem de um novo
sistema prisional, mas ele é o paradigma do esquema geral de funcionamento do
poder no mundo moderno.
Para isso, é ao mesmo tempo
excessivo e muito pouco que o prisioneiro seja observado sem cessar por um vigia:
muito pouco, pois o essencial é que ele se saiba vigiado; excessivo, porque ele
não tem necessidade de sê-lo efetivamente. Por isso, Bentham colocou o
princípio de que o poder devia ser visível e inverificável. Visível: sem cessar
o detento terá diante dos olhos a alta silhueta da torre central de onde é
espionado. Inverificável: o detento nunca deve saber se está sendo observado;
mas deve ter certeza de que sempre pode sê-lo (Foucault, 2012, p.191).
No
projeto arquitetônico do Panóptico os elementos fundamentais que constituem
esse poder são: a centralização, a moralização, a eficácia e acima de tudo a
individualização. Esta é, de fato, a estrutura unilateral e monolítica do poder
em nossos dias: centralizado, anônimo, disseminado e altamente eficaz. Foucault
considerou a invenção do Panóptico como um acontecimento na história do
espírito humano, e um tipo “de ovo de Colombo na ordem da política” (Foucault,
2012, p.195). Bentham, com sua invenção, deu aos médicos, penalistas,
industrias e educadores, o que eles procuravam: um poder contínuo e de custo
irrisório, que não necessitava de armas, de violência física ou de coações
materiais.
A
análise feita por Foucault, até este momento, nos leva a concluir que uma das
ideias principais de Vigiar e Punir é, sem dúvida, a de que as sociedades
modernas possam ser definidas como sociedades disciplinares, sem, contudo,
identificar essa disciplina com uma instituição ou com um aparelho. Esta
disciplina, seria uma espécie de poder que a tudo atravessa, não está filiada a
nenhum aparelho nem instituição, mas tem o poder de ligar uns aos outros, os
prolongar, fazer convergir, obrigando-os a se exercerem de um modo novo. Isto,
ainda que se trate de peças ou de engrenagens que pertençam ao Estado de uma
forma tão evidente como a polícia e a prisão.
No
século XIX, o século das ciências, o pensamento que permeava a sociedade, era
de que o modo de vida disciplinado, organizado pelas ciências e pelos
cientistas, levariam a humanidade a alcançar uma liberdade plena, porém, a
experiência, segundo Foucault, mostrou que, ao se desenvolverem, as disciplinas
científicas, conduziram rapidamente ao desaparecimento do homem. As sociedades
se tornaram funcionalistas e simultaneamente produto e instrumento da ação do
biopoder, que intervêm sobre os corpos, por meio de seus processos de
individualização sofisticados, acutilantes e penetrantes, da mesma forma que
são elas, as ciências disciplinares, que disponibilizam as imensas técnicas de
pesquisa e de registro de dados sobre os indivíduos, os seus corpos, as suas
vidas e suas paixões.
O
domínio da biopolítica, a sociedade disciplinar, o panoptismo generalizado, são
faces diferentes dos mesmos dispositivos escolhidos por um poder que mobiliza e
põe em prática novos instrumentos científicos de cálculo, estatística, medida,
generalização e abstração, que se destinam ao conhecimento dos corpos humanos,
permitindo que o controle e a dominação se tornem cada dia mais eficazes. “Uma
sujeição real nasce mecanicamente de uma relação fictícia. De modo que não é
necessário recorrer à força para obrigar o condenado ao bom comportamento, o
louco à calma, o operário ao trabalho, o escolar à aplicação, o doente à
observância das receitas” (Foucault, 2012, p.192).
O
processo civilizacional, possibilitado pelas disciplinas, tem seu ápice nas
organizações voltadas à dominação, que têm o poder de controlar e de regular
inteiramente a vida social. Neste ponto, o Panóptico tem
... um papel de amplificação;
organiza-se o poder, não é pelo próprio poder, nem pela salvação imediata de
uma sociedade ameaçada: o que importa é tornar mais fortes as forças sociais –
aumentar a produção, desenvolver a economia, espalhar a instrução, elevar o
nível da moral pública; fazer crescer e multiplicar (Foucault, 2012, p.197).
Para
Foucault, portanto, a estabilidade das sociedades altamente desenvolvidas não é
senão o resultado de operações reguladoras, conduzidas por organizações de uma
grande perfeição administrativa, que se manifestam por meio do exercício da
disciplina e do controle, por meio da domesticação, no espaço de vida de cada
indivíduo, para fazer dele um colaborador social dócil.
Assim,
e devido à sua concepção de dominação, talvez possamos dizer que, para
Foucault, as sociedades modernas são também, um pouco, sociedades totalitárias.
Encerrando essa terceira parte, o autor, deixa algumas perguntas que dão o que
pensar.
Acaso devemos nos admirar que a
prisão celular, com suas cronologias marcadas, seu trabalho obrigatório, suas
instâncias de vigilância e de notação, com seus mestres de normalidade, que
retomam e multiplicam as funções do juiz, tenha-se tornado o instrumento
moderno da penalidade? Devemos ainda nos admirar que a prisão se pareça com as
fábricas, com as escolas, com os quartéis, com os hospitais, e todos se pareçam
com as prisões? (Foucault, 2012, p.214).
Instituições
completas e austeras
Retomando
a temática da prisão, Michel Foucault, diz que “a prisão é menos recente do que
se diz quando se faz datar seu nascimento dos novos códigos” (Foucault, 2012,
p.217). De fato, para o autor, antes do nascimento dos códigos penais, já
estava em funcionamento um modelo ou modelos de detenção penal. “A forma geral
de uma aparelhagem para tornar os indivíduos dóceis e úteis, por meio de um
trabalho preciso sobre seu corpo, criou a instituição-prisão, antes que a lei a
definisse como a pena por excelência” (Foucault. 2012, p.217). Então, que
novidade representou o surgimento da prisão? Provavelmente, a do sentido de
humanidade, de justiça social. Além disso, a prisão proporciona, segundo
Foucault,
[...] também um momento importante
na história desses mecanismos disciplinares que o novo poder de classe estava
desenvolvendo: o momento em que aqueles colonizam a instituição judiciária. Na
passagem dos dois séculos, uma nova legislação define o poder de punir como uma
função geral da sociedade que é exercida da mesma maneira sobre todos os seus
membros, e na qual cada um deles é igualmente representado (FOUCAULT, 2012,
p.217).
O
surgimento da prisão, no século XIX, tornou-se uma coisa tão óbvia que se
sobrepôs às punições que faziam parte dos ideais da reforma ocorrida no século
XVIII. A prisão era óbvia no sentido de aplicar um castigo igualitário, que
correspondia a uma clareza jurídica. A privação da liberdade tinha a função de
reparação econômico-moral, já que quantificava exatamente a pena segundo a
variável do tempo. A aceitação da prisão se deu no sentido de aparelho
transformador dos indivíduos, pois passa a utilizar os mesmos mecanismos
existentes no quartel, na escola, na oficina e no hospital. Também, a prisão,
parecia ser a forma mais imediata e mais civilizada de todas as penas. Porém,
em poucos anos, ficou óbvio “todos os inconvenientes da prisão, e sabe-se que é
perigosa, quando não inútil. E, entretanto, não vemos o que pôr em seu lugar.
Ela é a detestável solução, de que não se pode abrir mão” (FOUCAULT, 2012, p.218).
Um
aparente problema, gerado pelas instituições penais, foi relativo a divisão de
controle que se fez necessário, entre juízes e os diretores da prisão e seus
vigias, bem como eventualmente com fiscais, sacerdotes e professores. Esses
agentes de execução das penas, passam a reivindicar para si uma parte da
soberania punitiva. Naturalmente, esta divisão de poder não aconteceu de forma
pacífica. Na visão de Foucault, os juízes nunca aceitaram de bom grado a
apropriação do controle desse suplemento penitenciário que lhes retirava poderes
sobre o detido e o sistema. No entanto, essa contenda ocorreu devido a
introdução de relações de saber na justiça criminal. Introduziu-se um saber
clínico sobre os condenados, que poderia proporcionar o tratamento das doenças
morais. Pois a exigência quanto à prisão era que houvesse uma regeneração do
detido. Portanto, o sistema penitenciário receberia das mãos da justiça um
condenado e deveria devolver à sociedade um cidadão útil. Surge, então, um novo
personagem: o delinquente. Este substitui o infrator e mobiliza todo um estudo
individualizado.
O delinquente se distingue do
infrator pelo fato de não ser tanto seu ato quanto sua vida o que mais o
caracteriza. A operação penitenciária, para ser uma verdadeira reeducação, deve
totalizar a existência do delinquente, tornar a prisão uma espécie de teatro
artificial e coercitivo onde é preciso refazê-la totalmente. O castigo legal se
refere a um ato; a técnica punitiva a uma vida; cabe-lhe, por conseguinte, reconstituir
o ínfimo e o pior na forma do saber; cabe-lhe modificar seus efeitos ou
preencher suas lacunas, através de uma prática coercitiva (FOUCAULT, 2012,
p.238).
Segundo
as palavras de Michel Foucault (2012), um novo conceito foi formado para esse
novo personagem: o delinquente. A justiça não se interessa mais, apenas pelas
causas do crime, ela busca encontrar a história da vida do delinquente, para
possa ministrar a sua reeducação. Neste novo conceito, o criminoso existe antes
do crime e até mesmo fora dele. Surge, a partir deste momento, segundo Foucault
(2012), um novo saber científico, a criminologia, que visa encontrar o
indivíduo enquanto delinquente e o delinquente enquanto indivíduo. Nesse
labirinto criminológico, a delinquência é considerada uma síndrome mórbida, um
desvio patológico da espécie humana. Três tipologias são então apresentadas. O
delinquente pode ser: 1) Indivíduo dotado de inteligência e recursos
intelectuais superiores à média, que nesse caso, se torna malfeitor por
predisposição inata ou por questões morais e sociais externas; 2) sujeitos
viciosos, limitados, estúpidos, apático, que se deixam levar por más
associações; 3) inaptos ou incapazes, levados ao crime pelos seus instintos
pessoais e incapacidades próprias.
Ao
passo que a justiça penal se ocupa do infrator, a penitenciária se ocupa de
outra pessoa, o delinquente. Uma outra pessoa dentro daquela primeira, que é
considerada uma unidade biográfica, núcleo de periculosidade e representante de
um tipo de anomalia. Assim, a técnica penitenciária e o delinquente são indissociáveis
e impuseram-se aso tribunais e às leis. De acordo com Foucault:
Onde desapareceu o corpo marcado,
recortado, queimado, aniquilado do supliciado, apareceu o corpo do prisioneiro,
acompanhado pela individualidade do “delinquente”, pela pequena alma do
criminoso, que o próprio aparelho do castigo fabricou como ponto de aplicação
do poder de punir e como objeto do que ainda hoje se chama a ciência
penitenciária (FOUCAULT, 2012, p.241).
Concluindo
esse capítulo, Foucault, cita que “a delinquência é a vingança da prisão contra
a justiça. Revanche tão temível que pode fazer calar o juiz. É então que os
criminologistas se impõem” (2012, p.242). O autor passa, então, a elencar uma
série de críticas que foram feitas, ao sistema prisional, desde sua
implantação, e que se repetem atualmente: as prisões não diminuem a taxa de
criminalidade, funcionam mesmo como quartéis do crime; a detenção provoca a
reincidência e, como tal, fabrica delinquentes; vigora uma administração
arbitrária, a corrupção, o medo e a incapacidade dos guardas; assiste-se à
exploração do trabalho penal, sem caráter educativo. A prisão é, nas palavras
de Foucault, um duplo erro econômico: diretamente, pelo custo intrínseco da sua
organização; indiretamente, pelo custo da delinquência que ela não reprime. Erros
que foram apontados no passado, mas que se mostram atuais, quando examinados à
luz dos acontecimentos de hoje.
O carcerário
Ao
final de Vigiar e Punir, Foucault,
faz uma espécie de síntese, trazendo de volta os temas da disciplina, do
adestramento, da docilidade dos corpos, bem como a sua relação com os cinco
modelos de referência: família, exército, oficina, escola e poder judiciário.
Como novidade, o autor cita o surgimento de Mettray, a colônia penal para
jovens, como o paradigma da técnica disciplinar. Sobre esta instituição
Foucault diz:
Os chefes e subchefes em Mettray
não devem ser exatamente nem juízes, nem professores, nem contramestres, nem
suboficiais, nem “pais”, mas um pouco de tudo isso e num modo de intervenção
que é específico. São de certo modo técnicos do comportamento: engenheiros da
conduta, ortopedistas da individualidade (FOUCAULT, 2012, p.279).
Para
Foucault, é aqui, na Mettray, que nasce uma nova categoria de vigilância. O
adestramento dos corpos já não é conseguido somente pela observação, mas também
pela avaliação contínua do comportamento, utilizando todo um aparato de
técnicas organizadas em um saber científico chancelado pela medicina, educação
e igreja. Um conhecimento adquirido em escolas especializadas na arte do poder
e na técnica de disciplinamento. Portanto, Foucault, considera que a abertura
oficial de Mettray, em 1840, é o marco da formação do sistema carcerário que se
desenvolveu até o modelo atual e, mais importante do isso, essa data, marca o
nascimento da psicologia científica.
Juntamente
com a psicologia científica, que abastece de legibilidade o sistema carcerário,
Foucault, menciona que houve um encarecimento de “uma nova forma de ‘lei’: um
misto de legalidade e natureza, de prescrição e constituição, a norma”
(FOUCAULT, 2012, p. 287). Esse controle da normalidade é prontamente exercido
pelos profissionais da disciplina, da normalidade e da sujeição, enquadrados
pela medicina ou pela psiquiatria, o que lhes dá a chancela cientifica e o
apoio do aparelho judiciário. Portanto, se torna um exercício legal do direito
de punir. A técnica de controle das
normas, que busca a docilidade dos corpos desviados, tem expandida sua atuação,
abrangendo os hospitais, as escolas, as repartições públicas e as empresas
privadas. Objetivo é simples: naturalizar o poder da normalização, difundir as
técnicas penitenciárias. Essa naturalização, deveria abarcar as disciplinas
mais inocentes, montar uma rede carcerária além muros penitenciários, com
instituições e com procedimentos parcelares e difusos, reunidos em um só espaço
legislativo, disseminados pela sociedade e espalhados, por tanto, a todo corpo
social. Esta nova economia de poder arrasta, de acordo com Foucault, “um desejo
furioso de parte dos juízes de medir, avaliar, diagnosticar, reconhecer o
normal e o anormal; e a honra reivindicada de curar ou readaptar (FOUCAULT,
2012, p.287).
A
difusão e multiplicação do poder normalizador lançou novos sujeitos do
controle, os juízes da normalidade, que estão operando em todas as esferas da
sociedade. Hoje, nos deparamos com o professor-juiz, o médico-juiz,
educador-juiz, o assistente social-juiz, o funcionário público-juiz, todos
fazendo reinar a universalidade do normativo e do poder normalizador na
sociedade moderna. Para Foucault, este é o funcionamento, atual, do poder de
vigilância Panóptico. O aparelho de punição, está ativo outra vez, mas agora de
acordo com a nova economia do poder.
Se entrarmos, depois da
era da justiça “inquisitória”, na da justiça “examinatória”, se, de uma maneira
ainda mais geral, o procedimento do exame pôde estender-se tão amplamente à
sociedade toda, e dar lugar às ciências do homem, um dos grandes instrumentos
disso foi a multiplicidade e o entrecruzamento preciso dos diversos mecanismos
de encarceramento. Não quer dizer que da prisão saíram as ciências humanas. Mas
se elas puderam se formar e provocar no êpistemê
todos os efeitos de profunda alteração que conhecemos, é porque foram levadas
por uma modalidade específica e nova do poder: uma certa política do corpo, uma
certa maneira de tornar dócil e útil a acumulação dos homens. Esta exigia a
implicação de correlações definidas de saber nas relações de poder: reclamava
uma técnica para entrecruzar a sujeição e a objetivação: incluía novos
procedimentos de individualização. A rede carcerária constitui uma das
armaduras desse poder-saber que tornou historicamente possíveis as ciências
humanas (FOUCAULT, 2012, p.288).