Um mundo
estranho e cheio de injustiças! Com este pensamento, Critilo chega ao final de
seus relatos sobre as peripécias do famigerado Governador de Chile Fanfarrão
Minésio. Esta décima terceira carta, que ficara incompleta, faz uma denúncia do
uso da religião e da religiosidade do povo para meios corruptos.
[...]
Ainda, caro amigo, ainda existem
Os
vestígios dos templos suntuosos
Que a
mão religiosa do bom Numa
Ergueu a
Marte e levantou a Jano.
Ainda,
ainda lemos que elegera,
Para
essas divindades sacerdotes,
E que
muitas donzelas consagrara,
A fim de
conservar-se aceso o fogo
Em o
templo de Vesta, sobre as aras.
Também,
também sabemos que esse sábio,
Para ter
mais conceito entre o seu povo,
Fingiu
que a ninfa Egéria, sendo noite,
Vinha
falar com ele, e que benigna
A forma
do governo lhe inspirava (p.185).
Critilo usa
personagens da antiga Roma para ilustrar o que estava acontecendo em seus dias.
Mais precisamente, o autor, faz uso da mitologia grega, usada pelos romanos, para denunciar os abusos de poder que eram justificados como orientações e conselhos divinos.
Desta forma,
Critilo, cita Numa Pompílio (753 a.C.-673 a.C.) que foi um sabino escolhido
como segundo rei de Roma. Sábio, pacifico e religioso, dedicou-se a elaboração
das primeiras leis de Roma, assim como dos primeiros ofícios religiosos da
cidade e do primeiro calendário.
Numa Pompílio
acrescentou dois meses ao calendário que passou a ter 354 dias. Esses novos
meses foram dedicados aos deuses. O primeiro mês criado foi janeiro em
homenagem a Jano, deus de duas faces, uma voltada para a frente e outra para
trás. Protetor das entradas e saídas, ele era considerado também deus dos
princípios e começos – como a primeira hora do dia e o primeiro mês do ano. O segundo
mês que foi instituído por Numa Pompílio foi março. Dedicado a Marte, deus da
guerra.
A lenda afirma
que o projeto e reforma política e religiosa de Roma aplicado po Numa Pompílio
foi ditado a ele pela ninfa Egéria, com a qual, já viúvo, costumava passear no
bosque e que se apaixonou por ele ao ponto de fazê-lo seu esposo.
O uso da
religião e religiosidade, no caso de Numa Pompílio, possibilitou ao povo
aceitar e apoiar as reformas que eram estabelecidas, pois eles acreditavam que
estas eram de fonte divina.
O mesmo
fez Sertório, que dizia
Que nada
executava, que não fosse
Ensinado
por uma branca cerva,
Que a
deusa caçadora lhe mandara.
Mafoma,
o vil Mafoma, astuto segue
Também
esse sistema. Ao seu ouvido
Acostuma
a chegar-se a mansa pomba.
A nação
ignorante se convence
De que
este seu profeta conhecia
Os
segredos do Céu por esse meio.
Não há,
meu Doroteu, não há um chefe,
Bem que
perverso seja, que não finja
Pela
religião, um justo zelo,
E quando
não o faça por virtude,
Sempre
ao menos o mostra por sistema. (p.185)
[...]
Outro personagem
romano citado por Critilo foi Quinto Sertório. Ele era da cidade de Núrsia,
terra dos sabinos. Viveu, segundo o que se sabe, entre os anos 100 a.C.-50
a.C. Sertório era um homem corajoso e estrategista, por isso logo alcançou importantes
postos no exército romano, se tornando o comandante de um batalhão.
No ano 73 a.C.,
na Espanha, um campônio chamado Espano, que vivia nos campos, encontrou um dia,
por acaso, uma cerva que havia há pouco dado cria e fora desencovada por caçadores.
Apoderando-se da mãe, ele tratou também de assenhorear-se da cria, uma pequena
cerva de pêlo totalmente branco. Uma raridade! Sabendo achar-se Sertório no
lugar, e que ele recebia com satisfação os presentinhos que lhe faziam de
frutas, macacos e caças, mostrando-se muito reconhecido aos seus doadores, e
remunerando-os devidamente, o campônio foi oferecer-lhe a pequenina cerva, que
muito o agradou.
Com o decorrer
do tempo ele tornou-a tão mansa e domesticada que ela o atendia ao chamado,
seguia-o por toda parte e não se assustava com a presença dos inúmeros soldados
armados, nem com o barulho e tumulto do acampamento. Aos poucos Sertório
transformou aquilo em milagre, fazendo crer aos bárbaros que aquilo fora uma
dádiva que Diana lhe fizera, para prognosticar-lhe as coisas futuras, pois sabia
serem os bárbaros crentes e supersticiosos por natureza e não relutarem em
receber semelhante crença.
Quando ele
recebia notícias secretas de que os inimigos iriam atacar alguns lugares dos
países e províncias que lhe estavam subordinados, ou que, de surpresa ou por
valor, lhe haviam tomado algum de tais lugares, ele declarava-lhes que, à
noite, durante o sono, a cerva o prevenira, aconselhando-o a conservar sua
gente a postos e em armas. Ao receber aviso de que algum dos seus tenentes
havia ganho um combate ou levava vantagem sobre os inimigos, ele escondia o
mensageiro, e levava sua cerva a público, coroada e coberta de ramalhetes de
flores, declarando que alguma boa notícia devia estar a chegar-lhe. Exortava a
todos a ter esperança e a se alegrar, e pedia-lhes que fizessem sacrifícios aos
deuses, rendendo-lhes graças pela boa nova que não tardaria a receber.
Desta forma,
Critilo, faz denuncia de como o vil governante utiliza a religião e a
religiosidade do povo para justificar suas travessuras e atos de corrupção,
fazendo-os crer que ele, Minésio, faz o que faz por orientação divina.
Apesar de todas as cartas serem escritas em
tom de denúncia, não há nada nelas que corresponda a um sentimento de
nacionalismo e rebeldia contra o domínio português ou contra o sistema de poder.
Sua crítica dirige-se à violação da justiça constituída, ao abuso de poder, à
corrupção palaciana e aos desmandos apoiados na militarização do governo
("Não há, não há distúrbio nesta terra / De que a mão militar não seja
autora"). As críticas contidas nelas ultrapassam as circunstâncias de um
determinado governo para desnudar as bases do autoritarismo colonial, com seu
sistema de privilégios e sua mão militar.
FIM