No princípio era a força bruta, a bestialidade. A
violência pura e simples presidia às relações entre os homens. Os senhores
primitivos manifestavam o seu ser na dominação brutal e selvagem dos que a eles
se submetiam. Era o reino do ferro e do sangue, da pura força instintiva. Como
se dá a passagem do estado animal ou estado natural ao estado social?
Os mais fortes, os dominadores, os conquistadores,
constrangem os mais fracos a respeito de determinadas regras de vida. A força
fez deles organizadores natos. A organização das relações sociais não nasce,
portanto, de um contrato, mas sim de um constrangimento. A lembrança do ferro e
do sangue transforma os fracos em seres obedientes, capazes de obedecer,
força-os a criar a consciência do dever. O temor da punição obriga o fraco a
renunciar à satisfação imediata dos seus desejos, a respeitar a ordem
estabelecida pelo forte, a saber, cumprir as exigências da vida social. Esta
repressão dos instintos, necessária à organização da vida em sociedade, está na
origem da “má consciência”. Ela surge primeiramente no fraco, no escravo, que,
incapaz de se impor ao senhor, interioriza a sua agressividade, dirige-a contra
si mesmo, recrimina-se, sente como uma “falta” a exteriorização e expansão dos
seus instintos. Os senhores estabelecem o seu ser como ponto de referência de
toda a ação e de toda a valoração. O que entrava a afirmação do seu ser e do
seu agir é considerado “mau”. A sua moral baseia-se no orgulho, na
independência a respeito de toda e qualquer norma exterior. A dúvida - será que
estou a proceder bem? - não faz parte da sua moral. Esta consiste na criação de
valores que se fundam na espontaneidade agressiva da sua ação, uma
espontaneidade que não sabe o que é a falta. Confiantes, inocentes opressores -
porque não sabem o que é a “falta” -, são violentos nas suas obras e nos seus
gestos porque a natureza assim faz os fortes e os senhores.
Das considerações já expostas podemos perspectivar
o tipo de operação que permitirá ao fraco submeter o forte: dar a este má
consciência, ou seja, impedi-lo de satisfazer os seus instintos agressivos,
conduzindo-o à introversão, à interiorização dessa agressividade.
Contudo, para que isso aconteça, o conceito de “má
consciência” vai sofrer uma transformação religiosa: nascendo no escravo como
consciência de estar em falta quando não cumpre a ordem estabelecida pelo
senhor, a má consciência vai transformar-se em pecado, em falta livremente cometida
contra a vontade de Deus. Veremos que a tentativa de generalização da má
consciência, entendida como consciência pecadora, é a forma de o ressentimento
característico do escravo triunfar. O fraco vive ao mesmo tempo a experiência
da interiorização, da introversão dos seus instintos, e a do ressentimento, da
inveja daquele que é e age plenamente. Trata-se de envenenar o forte,
intoxicá-lo aproveitando de algum modo o abalo que nele provoca a passagem
brusca do estado animal ao estado social. Com efeito, a vida em sociedade
determina que no forte a consciência gradualmente se imponha ao instinto como
princípio do agir. A entrada em sociedade é uma armadilha para o forte. A perda
da inocência que progressivamente se verifica conduzirá ao extremo da consciência
de si como pecador.
O agente,
o promotor desta intoxicação, segundo Nietzsche, é o “padre ascético”. A sua
ação é complexa, pois capta o ressentimento da massa dos fracos, inverte a
direção deste ressentimento - assim surge a má consciência como pecado - com a
finalidade de sutilmente contaminar os fortes e sãos, que sentem alegria e
empenho em viver. Desmontemos, nos seus momentos essenciais, este processo:
a) A fase do ressentimento
O ressentimento
surge naquilo que Nietzsche chama de “fase judaica da moral ocidental”. Os
judeus representam, em termos históricos, a figura da revolta contra os
senhores. Os judeus são, não por determinismo genético, mas por conjuntura
histórica, o “gênio vingativo” por excelência. Tendo a sua raiz num tipo de
vida enfraquecida, débil e impotente, o ressentimento exprime-se do seguinte
modo: aquele que é forte é a causa da minha fraqueza, aquele que afirma a vida
é a causa do meu desgosto dela. Em suma: “Eu sofro, logo a culpa é deles”. (Nietzsche,
A Genealogia da Moral, vol. III)
b) A mudança de direção do ressentimento
Corresponde
à fase propriamente cristã da moral, à valorização do espírito e à
desvalorização do corpo. A mudança de direção do ressentimento consiste na sua
interiorização. O padre ascético transforma o “Eu sofro logo a culpa é deles”
no “Eu sofro logo a culpa é minha”.
“Eu sofro: alguém deve ser a
causa — assim raciocinam todas as ovelhas doentes. Então, o pastor, o padre
ascético, responde-lhe: — É verdade minha ovelha, alguém deve ser a causa
disso: mas és tu, tu mesmo, que és causa de tudo isso”. (Nietzsche, A
Genealogia da Moral, vol. III)
Perguntando pela causa do seu sofrimento, o fraco
procura, perante o seu pastor, um responsável para se vingar. Baseado no dogma
do pecado original, o “padre ascético” diz-lhe que o seu sofrimento é o
resultado de um castigo divino provocado por uma falta livremente cometido
contra a “Sua Vontade”. Ao homem doente que procura uma explicação para o seu
sofrimento, um sentido para a realidade, o padre ascético pinta o quadro de uma
humanidade enraizada no mal, infeliz, porque originariamente pecadora. A sua
capacidade em compreender o pessimismo, o desencanto do fraco, é profunda: o
ódio a esta vida, determinado pela incapacidade de dela triunfar, só poderá ser
aplacado com a invenção de um reino onde todos os males serão curados.
Encarnação do desejo de viver noutro lado, no
Além, ou seja, do ideal ascético, o padre, o pastor do enorme rebanho dos
falhados, acrescenta ao dogma do pecado original o dogma da redenção dos
pecados. De algo que simplesmente destruía o sofrimento torna-se meio de
salvação ou redenção. Do “Eu sofro” passamos ao “Eu quero sofrer”, esta vida é
um “vale de lágrimas”, mas devemos suportá-la para merecer a outra vida, a “verdadeira
vida”. O “padre ascético” declara o homem radicalmente culpado, fala seriamente
de um Deus juiz, que pune e castiga o pecado e que exige submissão e
obediência.
c) A contaminação dos fortes
A má consciência, a consciência de si como pecador,
apesar de poder parecer o contrário, não favorece os senhores, melhor dizendo,
não conduz os escravos à humildade e obediência. Estas agora só têm sentido
perante Deus, aquele perante o qual, como ensina o padre ascético, estamos em
falta.
O ressentimento, a vontade de vingança e de triunfo
sobre os valores dos fortes, é o que determina a intervenção do pastor do
rebanho dos fracos. A má consciência - o sentir-se culpado, originariamente
culpado - acaba por envenenar o forte, que, na passagem à civilização, à
organização social, vê progressivamente a consciência sobrepor-se ao instinto.
Da consciência passa-se à má consciência. De orgulhoso nos seus instintos
agressivos e sãos, o forte, impressionado com o semblante sério e com o
aparente autodomínio do padre ascético, passa a sentir-se culpado, a perder a
confiança nos seus valores. O poder espiritual do pastor abala a confiança que
ele tinha em si e no seu corpo e, julgando o seu privilégio o resultado de uma,
qualquer, ação maldosa ou faltosa, o forte é enfraquecido pela culpabilidade. “Há
vergonha em ser feliz perante tanta miséria e sofrimento”. (Nietzsche, A
Genealogia da Moral)
O padre ascético é o agente da intoxicação e da
corrupção generalizada da vida. É um fraco, um homem que, consumido pelo desejo
do Além, despreza esta vida, julgando-a inferior, mas é também determinado pelo
desejo de exercer um ascendente sobre os homens.
É essa vontade de domínio que o liga à terra. O
pecado e o ressentimento dos “pecadores” a respeito desta vida são os “filões”
dos quais não pode prescindir. Só pode conservar o seu poder envenenando, ao
mesmo tempo em que cura. “Os teus pecados estão perdoados, mas tu continuas a
ser, em virtude do Pecado Original, um pecador”. Tornados todos os homens
pecadores, o padre ascético está em condições de exercer o seu domínio sobre os
homens. Ele tem a receita que visa salvar os pecadores da perdição. Essa
receita de salvação é a moral cristã.
A vitória do ideal ascético, a venenosa
transformação do homem em pecador e em penitente, corresponde a uma perversão
da moral dos nobres, dos fortes; transforma-se em virtude a incapacidade de
viver, a renúncia à vida, considera-se forte aquele cuja alma, desejosa de
comunhão com Deus, luta penosamente contra os instintos, as paixões, contra o
corpo.
Os valores resultantes desta inversão perversa são
determinados pela vontade de poder vingativa dos falhados e invejosos,
conduzidos pelos inimigos mais maldosos da vida: os padres. O que era
considerado bem se torna mal. A força, a agressividade tornam-se injustiça, a
coragem dos fortes torna-se brutalidade, a sua alegria de viver, gozo egoísta e
deboche. Exalta-se a fraqueza, a impotência, a mansidão.
Infiltrando
a ideia de pecado original na consciência humana em geral, fazendo de cada
homem um pecador que deve penitenciar-se mediante a luta contra os afetos, as
paixões e tudo o que o prende à terra, ao sensível, o padre ascético homologa o
ressentimento dos fracos e faz com que os seus valores triunfem. Apresentando
uma doutrina que corresponde à vontade de vingança dos doentes e dos vencidos
da vida, o austero pastor satisfaz ao mesmo tempo a sua vontade de domínio
sobre a vida dos homens. São estes impotentes astutos, estes homens cansados do
real e intoxicados de Ideal, que determinam a figura que o homem ocidental, segundo
Nietzsche, apresenta.
“Homens não suficientemente
aristocratas para perceber a hierarquia dos seres e o abismo que se estende
entre um homem e outro, eis os homens que, com a sua 'igualdade perante Deus',
reinaram até aos nossos dias sobre o destino da Europa, até finalmente obterem
uma espécie em estado de menoridade, quase risível, um animal gregário,
qualquer coisa benevolente, doentia, medíocre, o Europeu de hoje”. (Nietzsche,
Para além do Bem e do Mal)
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