Para
Nietzsche, Sócrates (e Platão) é um momento decisivo no percurso cultural do
Ocidente. Com ele acaba a grande época da tragédia grega — glorificação da vida
mesmo nas suas dimensões dolorosas e sombrias — e começa uma época em que a
tendência é a de procurar fugir às contradições, aos sofrimentos, a tudo o que
a vida tem de sensível e de físico. Sócrates, no entender de Nietzsche,
inventou a metafísica, transformou a filosofia na procura do inteligível e do
eterno (supra-sensível) pregando a renúncia ao mundo sensível, ao mundo do
devir e ao corpo, considerado como “o carcereiro da alma”.
Inaugura-se
com Sócrates uma atitude que caracterizará, em geral, a cultura ocidental: a “calúnia
do sensível”, a desconfiança em relação ao corpo e aos sentidos, o desprezo e a
condenação de tudo o que é natural. Com Sócrates faz-se da vida aquilo que deve
ser julgado em nome da razão, em nome de valores considerados “superiores”,
tais como a Verdade e o Bem, identificados com o divino, o supra-sensível. A
decadência, a atitude antivital ou antinatural surge claramente com Sócrates,
que estabelecerá a distinção entre dois mundos, identificando o inteligível com
o mundo real e verdadeiro e o sensível com o mundo ilusório e falso.
Sócrates
sobrevalorizou o aspecto lógico-racional, fez da razão o centro de toda a
interpretação da realidade e da verdade o valor supremo. Nele está a raiz dessa
“venerável” tradição que se resume na fórmula: “Filosofar é procurar a verdade
com toda a nossa alma”. Tudo submetendo ao juízo da razão, Sócrates vai,
segundo Nietzsche, interpretar a arte trágica como algo irracional porque
apresenta efeitos sem causas e causas sem efeitos. Por isso deve ser ignorada.
As tragédias — os escritos e as peças de Esquilo e Sófocles — afastavam o homem
do caminho da verdade, não obedeciam à razão, que tudo quer claro e distinto.
Sócrates colocará a tragédia clássica na categoria das “artes aduladoras”, como
conjunto de emoções agradáveis mas inúteis, “indignas de filósofos”. Sócrates é
o radical oposto da concepção dionisíaca da vida, do homem trágico. Ele é o
homem teórico.
Enquanto
que em qualquer homem produtivo o instinto é uma força afirmativa e criadora e
a consciência uma força crítica e negativa, em Sócrates o instinto torna-se
crítico e a consciência criadora. Com a sobrevalorização do homem teórico
abandonou-se o fenômeno do trágico, que exprimia a natureza profunda da
realidade. Distinguir o verdadeiro do aparente — sublime ilusão metafísica —
era, para Sócrates, a única atividade digna do homem. Querer a verdade, o
conhecimento puramente racional, este era o lema de Sócrates. Nietzsche
interrogar-se-á sobre o valor deste querer. Por que querer a verdade, a razão?
O que é que em nós quer a verdade? Que vontade, que tipo de vitalidade, se
manifesta neste querer a verdade?
Para
Nietzsche, Sócrates, sob o nome de verdade, oculta e ao mesmo tempo manifesta o
ódio ao sensível, ao corpo, às paixões, ao devir, em suma, a procura da verdade
racional traduz-se numa desvalorização da vida. Com o racionalismo
socrático-platónico começa a decadência. Em vez de confiar no corpo e nos
instintos, Sócrates faz da razão a verdadeira realidade do homem, ó que
consistirá em reprimir a natureza, os sentidos, os instintos, ou seja, em
transformar a decadência num modelo de humanidade.
A razão
vai condenar a vida, os sentidos, os instintos. O doente que não pode suportar
a vida no que esta tem de sensível, de físico, vai vingar-se maldosamente, vai
amaldiçoar o corpo e glorificar os argumentos da razão. Transformando a razão
na “verdadeira força” do homem, o fraco, o homem de vitalidade débil e
enfraquecida, vai afirmar-se pretensiosamente como superior rebaixando o seu
adversário através da dialética, que é um discurso em que as teses do
adversário são submetidas à tortura da negação racional. Nietzsche vê no
diálogo socrático uma forma de o “homem da razão” ridicularizar o seu
interlocutor.
O ataque
de Nietzsche a Sócrates é, em alguns aspectos, grosseiro e injusto. O que nos
interessa é, contudo, ver o sentido desse ataque. Para Nietzsche a filosofia
não é um puro discurso, racional e objetivo: confiar na razão é também escolher
certo tipo de combate que tem a ver com o tipo de homem que se é. Para
Nietzsche, quando um homem decide escolher-se como ser racional e
sobrevalorizar a razão é porque, muito provavelmente, tem necessidade de uma
razão tirânica para reprimir e recalcar a desordem dos seus instintos, o seu
desequilíbrio psicofisiológico.
Abandonar os instintos em favor de um mestre
despótico, a razão, é, segundo Nietzsche, o sinal de uma vontade despótica, de
um desejo de ser autoridade, de dominar-se a si mesmo e de dominar os outros:
ser racional a todo o custo é, diz Nietzsche, expressão de uma vontade muitas
vezes sádica de dominar por certos meios. Ora, estes meios são mais sintomas do
que remédios, porque a razão pode ser um falso médico que torna o homem cada
vez mais doente ao pretender salvá-lo. Vendo na dimensão sensível ou corpórea a
fonte de todos os conflitos, desgraças e discórdias que, segundo ele,
transformam a vida humana num inferno, Sócrates julga ver na razão, a dita
fonte do consenso e da concórdia, o remédio para todos estes males. Mas acaba
por transformar o homem num ser anêmico e mórbido, que deve auto-reprimir-se,
calar completamente a voz dos instintos, chegando ao ponto de querer a morte do
corpo para salvar a alma desta prisão. É preciso já estar muito doente para
querer este remédio: a salvação é, no fundo, uma perdição, sintoma ou manifestação
de uma vontade doentia.
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