quarta-feira, 3 de junho de 2020

A LITERATURA E A CIRCULAÇÃO DAS INFLUÊNCIAS

Introdução:
            A literatura moderna, assim como existe hoje, se desenvolveu a partir do processo de urbanização, impulsionado pelo advento da modernidade (FREITAG, 2002). O florescimento da vida urbana e o fortalecimento das instituições de ensino, são os fatores que marcaram a produção do conhecimento. Sérgio Buarque de Holanda (1995), em Raízes do Brasil, destaca que, enquanto os países latino-americanos, que foram colonizados pela Espanha, tiveram em sua colonização, desde o princípio, o transplante das instituições espanholas, que incluíam o traçado urbanístico das cidades e as universidades; no modelo de colonização português, implantado no Brasil, não houve o planejamento das cidades e as universidades, escolas e até mesmo as prensas tipográficas – além de não serem implantadas – foram banidas, sendo consideradas atividades contra a lei.
            Os filhos da elite, que viviam no Brasil, tiveram que buscar conhecimento, ou nas colônias hispânicas ou no continente europeu. Em qualquer um dos casos, fica evidente a influência que essas elites intelectuais sofreram, por conta do convívio com os intelectuais destes países e sua realidade. Porém, quando esses brasileiros retornavam para sua pátria, a influência, os sentimentos e o conhecimento que eles receberam, passava por um processo de adequação à realidade brasileira, era como uma espécie de personificação intelectual e, por sua vez, de influenciados, eles passavam a influenciar, quer seja aos vizinhos da américa latina, aos próprios europeus e também aos países africanos, especialmente os de língua portuguesa.
            Nosso objetivo, neste trabalho, é discutir a circulação de sentimentos, canalizados através dos fluxos de influência cultural recíproca entre os países de língua portuguesa. O nosso recorte analítico tem como referência a questão da valorização de pátria, relacionando-a ao sentimento nacionalista que aparece nos poemas “Canção do Exílio” do livro “Poesias” do poeta brasileiro Gonçalves Dias, e “A minha Terra”, do livro “Espontaneidades da minha alma: às senhoras angolanas” do poeta angolano José da Silva Maia Ferreira.

 Os poetas e suas obras:
            Gonçalves Dias foi um dos principais escritores da Primeira Geração do Movimento Romântico, no Brasil. Este movimento se destacou pela grande ênfase dada ao sentimento nacionalista, em que o amor à pátria e ao herói patriota, representado pelo índio, eram fatores de exaltação e representatividade brasileira. O Nacionalismo Romântico, ficou conhecido como “nacionalismo de identidade ou orgânico”, em que seus praticantes, nutrem o sentimento de que seu povo é único e criativo, que sabe expressar sua cultura através de várias áreas como a língua, a religião, os costumes e assim por diante.
            Foi neste contexto, que Gonçalves Dias, escreveu o poema “Canção do exílio”, em que sua pátria, o Brasil, foi exaltada. Toda admiração que o poeta sente por sua terra natal foi expressa através do sentimento romântico nacionalista. Vejamos na integra os versos do poema:

Minha terra tem palmeiras
Onde canta o Sabiá,
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar – sozinho, à noite –
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu’inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá. (DIAS, 1969, p.11).

            José da Silva Maia Ferreira, filho de pais angolanos, embora tenha nascido em Luanda, desde os sete anos de idade, vivia no Rio de Janeiro, devido ao exílio político de seu pai. Assim como os brasileiros da elite, Maia Ferreira, buscou formação acadêmica em Portugal. Anos mais tarde, retornou ao Brasil e aqui morreu. Nos versos do poema, que destacaremos, o poeta, exalta grandiosamente Portugal, terra do colonizador, na tentativa de compará-la com sua própria pátria. Nessa comparação infeliz, Maia Ferreira, acaba inferiorizando sua terra natal diante de Portugal e até mesmo do Brasil, ex-colônia portuguesa. Vejamos alguns trechos deste poema, para percebermos como o sentimento nacionalista de Maia Ferreira o distanciou afetivamente de sua nação, gerando uma afinidade maior com a pátria do colonizador.

Minha terra não tem os cristaes
Dessas fontes do só Portugal,
Minha terra não tem salgueiraes,
Só tem ondas de branco areal.

Em seus campos não brota o jasmim,
Não matisa de flôres seus prados,
Não tem rosas de fino carmim,
Só tem montes de barro escarpados.

Não tem meigo trinar — mavioso
Do fagueiro, gentil rouxinol,
Tem o canto suave, saudoso
Da Benguella no seu arrebol,

[...]

Tem palmeiras de sombra copada
Onde o soba de tribo selvagem,
Em c’ravana de gente cansada,
Adormece sequioso de aragem.

Empinado alcantil dos desertos
Lá se aninha sedento Leão
Em covis de espinhais entr’abertos,
Onde altivo repousa no chão.

Nesses montes percorre afanoso,
A zagaia com força vibrando,
O Africano guerreiro e famoso
A seus pés a pantera prostrando.

Não tem virgens com faces de neve
Por que lanças enriste Donzel,
Tem donzelas de planta mui breve,
Mui airosas, de peito fiel. (FERREIRA, 2002, p. 27).

[...]

Não é pátria dos Vates da América
Que em teus cantos, com maga harmonia,
Na Tijuca em seu cume sentado
Decantaste em tão bela Poesia.
Não os tem; porque em terra africana
Não há cisne em gentil Guanabara,
Mais mimosa, mais bela e mais rica
Do que o oiro do meu Uangara (FERREIRA, 2002, p. 29).

[...]

Vi as belezas da terra,
Da tua terra sem igual,
Mirei muito do que encerra
O teu lindo Portugal,
E se invejo a lindeza,
Da tua terra a beleza,
Também é bem portuguesa
A minha terra natal (FERREIRA, 2002, p. 31).

[...]

Também invejo o Brasil
Sobre as águas a brilhar,
Nesses campos mil a mil,
Nesses montes dalém-mar.
Invejo a formosura
Desses prados de verdura,
Inspirando com doçura
O Poeta a decantar (FERREIRA, 2002, p. 31).

A circulação das influências: análise:
            Alfredo Bosi, em “História concisa da literatura brasileira”, afirma que Gonçalves Dias “foi o primeiro poeta autêntico a emergir em nosso Romantismo” (BOSI, 2006, p.104). Quanto a Maia Ferreira, embora sua obra seja a primeira a ser publicada em língua portuguesa por um autor africano, e seus poemas datem de 1849 – três anos após o lançamento dos poemas de Gonçalves Dias – ela, sua obra, só foi devidamente reconhecida no ano de 1967.
            No poema “Canção do exílio”, Gonçalves Dias, manifesta a intenção de apresentar um país sem igual. Afastado de sua terra natal, devido aos estudos, o eu lírico, passa a exaltar sua pátria, em comparação à terra estrangeira. A natureza exuberante é destacada pelo poeta como sendo essencial para que se encontre os amores e os prazeres que podem proporcionar a verdadeira satisfação na vida. Esse é o aspecto principal da pátria, sua beleza natural incomparável. Valendo-se da oposição dos advérbios “cá” – referindo-se a Portugal – e “lá” – em referência ao Brasil –, Gonçalves Dias, constrói ritmadas redondilhas que denotam a comparação. As marcas do romantismo, ficam evidentes no poema, especialmente pelo evasionismo do eu-lírico, que se refugia em sua terra natal ao “cismar – sozinho, à noite”. A religiosidade, também está presente no poema, na estrofe final que traz um tom de oração: “Não permita Deus que eu morra”.
            O sentimento nacionalista do poeta não pode ser colocado em dúvidas. Pelo contrário, seus sentimentos ficam tão evidentes, que até mesmo, dois versos deste poema (Nosso céu tem mais estrelas [...]/ Nossas várzeas têm mais flores), passaram a compor o hino nacional brasileiro – o símbolo maior de patriotismo.
            Dessemelhante do poeta brasileiro, Maia Ferreira inicia seu poema com um tom de humildade. As belezas que merecem ser afamadas, não são as de sua terra natal, mas sim as da bela Portugal. Comentando sobre essa atitude, Corrado (2010), diz que o poema “resume perfeitamente o dilema dos assimilados, cuja formação cultural estritamente euro-brasileira tinha que ser adaptada à nova exigência de afirmar um sentimento de identificação com a terra natal africana” (CORRADO, 2010). A relação com Gonçalves Dias neste trecho está, portanto, no fato de haver uma comparação, mas o tom de enaltecimento da terra natal, se encontra apenas no poeta brasileiro.
            Ao passo que Gonçalves Dias usa termos que exaltam sua terra natal, o Brasil, Maia Ferreira, utiliza o termo “”, inferiorizando seu país de origem, em comparação com as terras lusitanas: “Minha terra não tem os cristaes/ dessas fontes do só Portugal” e ainda acrescenta: “Em seus campos não brota o jasmim, / Não matiza de flores seus prados/ Não tem rosas de fino carmim, / Só tem montes de barro escarpados” (FERREIRA, 2002, p.26). Para Bosi (1992), historicamente, ocorre, com os povos colonizados, o que ele chamou de “Dialética da colonização”, em que o colonizado se sente inferior diante da colônia, acreditando que dela vem o poder e em todas as coisas ela é superior.
           
Conclusão:
            Em nossa análise comparativa entre as literaturas brasileira e angolana, por meio dos poetas Gonçalves Dias e Maia Ferreira, percebemos que ambos têm por objetivo a exaltação da terra, a qual consideram como sua. Desta forma, enquanto que o sentimento nacionalista gera uma reação em Gonçalves Dias, ele se diferencia em Maia Ferreira, provocando uma inversão, ou seja, um distanciamento afetivo de sua terra de origem.
            O poeta brasileiro, aclama a superioridade de sua terra natal, dizendo que nela há “mais aves que gorjeiam, mais estrelas, mais flores, mais palmeiras, mais amores, mais prazeres, mais primores e mais sabiás”, tornando essa terra superior até mesmo a Portugal, a terra do colonizador. Já para o poeta angolano, sua terra natal é inferior diante de Portugal, pois “ tem ondas de branco areal, só tem montes de barro escarpados, só tem raios de sol a queimar”. Nesse só ter faltoso, a pátria, “não tem cristaes, não tem salgueirais, não brota o jasmim, não tem meigo trinar-mavioso, não tem brilhante primavera, não tem brisa lasciva”. Por fim, finaliza o poeta: “Nada tem minha terra natal / Que extasie e revele primor, / Nada tem, a não ser dos desertos / A solidão que é tão grata ao cantor” (FERREIRA, 2002, p.31).
            Em conclusão, podemos dizer que a circulação de influências, embora seja real, nem sempre provoca a reação esperada, pois a natureza aberta de uma obra, possibilita diferentes leituras em diferentes contextos. Não estando, portanto, condicionada a um horizonte cultural estável de estruturas de sentimentos que integram um determinado tempo, espaço e sociedade.

Referências Bibliográficas:

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006.

CORRADO, Jacopo. À procura das influências brasileiras na construção literária angolana: o caso José da Silva Maia Ferreira. Maringá: 4º CELLI – Colóquio de Estudos Linguísticos e Literários, 2010.

DIAS, Gonçalves. Poesias. Seleção de Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Agir, 1969.

FERREIRA, José da Silva Maia. Espontaneidade da minha alma: às senhoras angolanas. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2002.

FREITAG, Bárbara. Cidade dos Homens. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002.

HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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