Cosima Von Bulov, em pleno século
XIX, desafia as convenções sociais, que não permitem que mulheres assistam aos
debates filosóficos, e se instala junto de Wagner, o seu amado. Em 17 de Maio
de 1869, ela pessoalmente convida Nietzsche a entrar no circulo de debates.
Nietzsche logo fica impressionado com o assunto em discussão: Siegfried. Percebe
por algumas notas que se chega até ele, que há um vibrante heroísmo que não
encontrara até aí senão prefigurado nos seus antecessores gregos — Heráclito e
Empédocles. Fala-se de tudo: de Schopenhauer, dos Gregos, da tragédia, do papel
que deve ser restituído à música nestes séculos ameaçados pela decadência.
Nietzsche é imediatamente conquistado.
Tudo
predispõe Nietzsche à euforia: a revelação de uma música que exprime o fundo
trágico da alma, o impulso e o refluxo das suas mais elevadas aspirações, a
estranha fusão do amor e da morte, a única que pode satisfazer, a justificação
da paixão pelo gênio, cujo exemplo é a união de Cosima e de Wagner, acima dos
juízos mesquinhos e dos vãos remorsos, além da coincidência entre destino e
liberdade, do destino mais pessoal, que contém a fórmula do oráculo de Delfos: “Torna-te
que és”.
Parece
haver um acordo total entre a orientação do pensamento de Nietzsche — a
oposição entre o apolíneo, forma de ser que se desenvolve no seio das
aparências, na claridade das apaziguantes ilusões, e o dionisíaco, invocador e
revelador do fundo atormentado e apaixonado do ser insaciado — e as ideias de
Wagner. Não procurava este através do mito uma imagem globalmente inteligível
da história da vida humana desde os começos da sociedade até a dissolução do
Estado, contudo, uma divergência torna-se cada vez mais nítida. Wagner torna-se
presa de “filtros mágicos”. No termo do esforço sobre-humano que o divinizou, o
homem cuja imagem ele nos oferece aspira ao seu próprio aniquilamento. Sonha
perder-se no nirvana. Wagner aceita de Schopenhauer uma doutrina da salvação
pela arte, pela compaixão, pela destruição da vontade de viver. Mal acaba
Tristão e Isolda, vemo-lo diluir esse imenso canto humano, demasiado humano, no
fervor supraterrestre. Wagner perde-se em confusas visões do Além.
São completamente
diferentes as aspirações de Nietzsche desde essa época. A arte verdadeiramente
educativa não poderia, para ele, nascer de encantamentos e de malefícios,
fazer-nos penetrar através das suas encantações no mundo verdadeiro para lá do
véu de Maria, esse tecido enganador das aparências. A arte deve reconciliar-nos
com este mundo em que vivemos, porque não há outro que nos possa servir de
refúgio. É à própria vida que nos devemos entregar, confiando-nos aos seus
fluxos e refluxos, mesmo que o preço da alegria seja pago com experiências
dolorosas. A arte que nos é necessária deve ser uma arte viril e não efeminada,
adequada às nossas esperanças terrestres. Wagner, tudo o indica, equivocou-se.
Não terá
ele confundido a arte dionisíaca, a arte que liberta, a arte criadora que brota
de uma plenitude excessiva e que conquista a alegria no seio do mais atroz
sofrimento com a arte dos séculos da decadência, essa máquina de esfrangalhar
os nervos, essa música entediante e sem força que, envolvendo-se em nebulosos
vapores, abandonava o homem aos seus terrores mórbidos, para lhe ensinar,
afinal, a renúncia e o esquecimento?
Só
Nietzsche permanece fiel àquele que julgou ser o ideal de Wagner: ressuscitar,
mediante a estreita ligação entre o mito, a poesia e a música, uma arte
inspirada no helenismo mais puro, capaz de transportar para o plano apolíneo,
onde a segurança se adquire à saída de um longo labirinto de tormentos e de
dúvidas, o delírio orgiástico do deus Diónisos. Ao pessimismo viril que aceita
o destino do homem com os seus riscos e a sua grandeza, a conquistar à custa de
duras provas e torturas, sucede em Wagner o pessimismo efeminado e insano que
cultiva a dor e finalmente abdica. É a metafísica de Schopenhauer que Wagner
transpõe para o plano musical.
Esse
ideal negativo é para Nietzsche repugnante.
Deixemos
Wagner e Schopenhauer entregues à avaliação implacável de Nietzsche:
“Interpretei
a música de Wagner como a expressão de uma potência dionisíaca da alma: nela
acreditei surpreender o estrondo de uma força subterrânea há séculos comprimida
e que, enfim atinge a luz, indiferente a que tudo o que hoje se pudesse chamar
cultura sofresse um abalo. Vê-se em que interpretei mal, vê-se igualmente no
que enriqueci Wagner e Schopenhauer: de mim mesmo. Toda a arte e toda a
filosofia devem ser consideradas como remédios e encorajamentos à vida em
crescimento ou em decadência e supõem sempre sofrimentos e sofredores. Mas há
duas espécies de sofredores: os que sofrem por superabundância de vida, que
querem uma arte dionisíaca e uma visão trágica da vida interior e exterior — e
os que sofrem por empobrecimento da vida, que pedem à arte e à filosofia a
calma, o silêncio e um mar pacífico — ou então ainda as convulsões, o
enferrujamento, a ebriedade. A dupla necessidade destes Wagner responde tão bem
como Schopenhauer. Negam a vida, caluniam--na, e por isso mesmo são os meus
antípodas”. (Nietzsche, Le Crépuscule des idoles, Paris,
ed. Mercure de France, 1942, pp. 66-67.)