segunda-feira, 19 de novembro de 2012

ENCONTROS IMPORTANTES DE NIETZSCHE: O FASCÍNIO DE WAGNER


Cosima Von Bulov, em pleno século XIX, desafia as convenções sociais, que não permitem que mulheres assistam aos debates filosóficos, e se instala junto de Wagner, o seu amado. Em 17 de Maio de 1869, ela pessoalmente convida Nietzsche a entrar no circulo de debates. Nietzsche logo fica impressionado com o assunto em discussão: Siegfried. Percebe por algumas notas que se chega até ele, que há um vibrante heroísmo que não encontrara até aí senão prefigurado nos seus antecessores gregos — Heráclito e Empédocles. Fala-se de tudo: de Schopenhauer, dos Gregos, da tragédia, do papel que deve ser restituído à música nestes séculos ameaçados pela decadência. Nietzsche é imediatamente conquistado.

Tudo predispõe Nietzsche à euforia: a revelação de uma música que exprime o fundo trágico da alma, o impulso e o refluxo das suas mais elevadas aspirações, a estranha fusão do amor e da morte, a única que pode satisfazer, a justificação da paixão pelo gênio, cujo exemplo é a união de Cosima e de Wagner, acima dos juízos mesquinhos e dos vãos remorsos, além da coincidência entre destino e liberdade, do destino mais pessoal, que contém a fórmula do oráculo de Delfos: “Torna-te que és”.

Parece haver um acordo total entre a orientação do pensamento de Nietzsche — a oposição entre o apolíneo, forma de ser que se desenvolve no seio das aparências, na claridade das apaziguantes ilusões, e o dionisíaco, invocador e revelador do fundo atormentado e apaixonado do ser insaciado — e as ideias de Wagner. Não procurava este através do mito uma imagem globalmente inteligível da história da vida humana desde os começos da sociedade até a dissolução do Estado, contudo, uma divergência torna-se cada vez mais nítida. Wagner torna-se presa de “filtros mágicos”. No termo do esforço sobre-humano que o divinizou, o homem cuja imagem ele nos oferece aspira ao seu próprio aniquilamento. Sonha perder-se no nirvana. Wagner aceita de Schopenhauer uma doutrina da salvação pela arte, pela compaixão, pela destruição da vontade de viver. Mal acaba Tristão e Isolda, vemo-lo diluir esse imenso canto humano, demasiado humano, no fervor supraterrestre. Wagner perde-se em confusas visões do Além.

São completamente diferentes as aspirações de Nietzsche desde essa época. A arte verdadeiramente educativa não poderia, para ele, nascer de encantamentos e de malefícios, fazer-nos penetrar através das suas encantações no mundo verdadeiro para lá do véu de Maria, esse tecido enganador das aparências. A arte deve reconciliar-nos com este mundo em que vivemos, porque não há outro que nos possa servir de refúgio. É à própria vida que nos devemos entregar, confiando-nos aos seus fluxos e refluxos, mesmo que o preço da alegria seja pago com experiências dolorosas. A arte que nos é necessária deve ser uma arte viril e não efeminada, adequada às nossas esperanças terrestres. Wagner, tudo o indica, equivocou-se.

Não terá ele confundido a arte dionisíaca, a arte que liberta, a arte criadora que brota de uma plenitude excessiva e que conquista a alegria no seio do mais atroz sofrimento com a arte dos séculos da decadência, essa máquina de esfrangalhar os nervos, essa música entediante e sem força que, envolvendo-se em nebulosos vapores, abandonava o homem aos seus terrores mórbidos, para lhe ensinar, afinal, a renúncia e o esquecimento?

Só Nietzsche permanece fiel àquele que julgou ser o ideal de Wagner: ressuscitar, mediante a estreita ligação entre o mito, a poesia e a música, uma arte inspirada no helenismo mais puro, capaz de transportar para o plano apolíneo, onde a segurança se adquire à saída de um longo labirinto de tormentos e de dúvidas, o delírio orgiástico do deus Diónisos. Ao pessimismo viril que aceita o destino do homem com os seus riscos e a sua grandeza, a conquistar à custa de duras provas e torturas, sucede em Wagner o pessimismo efeminado e insano que cultiva a dor e finalmente abdica. É a metafísica de Schopenhauer que Wagner transpõe para o plano musical.

Esse ideal negativo é para Nietzsche repugnante.

Deixemos Wagner e Schopenhauer entregues à avaliação implacável de Nietzsche:

“Interpretei a música de Wagner como a expressão de uma potência dionisíaca da alma: nela acreditei surpreender o estrondo de uma força subterrânea há séculos comprimida e que, enfim atinge a luz, indiferente a que tudo o que hoje se pudesse chamar cultura sofresse um abalo. Vê-se em que interpretei mal, vê-se igualmente no que enriqueci Wagner e Schopenhauer: de mim mesmo. Toda a arte e toda a filosofia devem ser consideradas como remédios e encorajamentos à vida em crescimento ou em decadência e supõem sempre sofrimentos e sofredores. Mas há duas espécies de sofredores: os que sofrem por superabundância de vida, que querem uma arte dionisíaca e uma visão trágica da vida interior e exterior — e os que sofrem por empobrecimento da vida, que pedem à arte e à filosofia a calma, o silêncio e um mar pacífico — ou então ainda as convulsões, o enferrujamento, a ebriedade. A dupla necessidade destes Wagner responde tão bem como Schopenhauer. Negam a vida, caluniam--na, e por isso mesmo são os meus antípodas”. (Nietzsche, Le Crépuscule des idoles, Paris, ed. Mercure de France, 1942, pp. 66-67.)

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